O filme 20.000 Espécies de Abelhas retrata com sensibilidade e autenticidade os conflitos internos de uma criança trans. A protagonista Coco (Sofia Otero), de 8 anos, vive infeliz, suspeitando que nasceu com defeito. Uma menina num corpo de menino. Quando a família viaja para a cidade natal da mãe Ane (Patricia López Arnaiz), que quer estar na festa de batismo da sobrinha, ela descobre quem é e decide como será sua vida dali em diante.
Divergências
No roteiro, as divergências dos membros da família em relação a Coco embasam as dúvidas que causam a sua tristeza. A mãe quer apoiá-la incondicionalmente, porém, não sabe como agir. Acaba, então, priorizando um outro problema, a separação do marido e a consequente necessidade de voltar a trabalhar. Por isso, se isola na oficina da casa da mãe, onde ela produzia peças de escultura quando era jovem. O pai de Coco não viajou, para planejar a reorganização da família com a separação do casal, embora os filhos (além de Coco, há uma filha adolescente e um menino mais velho que Coco) ainda não saibam de nada.
A vó de Coco, mãe de Ane, se incomoda com o cabelo comprido e da postura do neto, porque não quer que as pessoas comentem que é uma menina. Sobre essa questão, exige uma atitude menos complacente da mãe. A atitude do pai, que só entra para valer na história na festa de batismo, segue essa mesma linha da avó.
Com a mãe dedicada ao trabalho, o pai ausente, e a avó na oposição, uma pessoa se sobressai como agente de mudanças para a protagonista. É a sua tia-avó, a apicultora que motiva o título do filme (embora o roteiro não entre nos detalhes científicos para explicá-lo). Para sorte de Coco, sobra para essa senhora fazer-lhe companhia. Dessa forma, surge a oportunidade para uma convivência intensa que permite à tia-avó desvendar o que se passa com essa criança. Uma analogia entre os tipos de abelhas e os membros da família de Coco abre as portas para a compreensão, que ela levará até Ane.
Sem soluções melosas
Acertadamente, 20.000 Espécies de Abelhas está longe de ser um conto de fadas. O seu enredo não oferece soluções simplistas sobre a questão da transexualidade na infância. Nesse aspecto, as divergências dentro da família da protagonista expõem as dificuldades sobre a questão – sem nem precisar estender para o que acontece na escola e em outros ambientes. Decerto, muito se evoluiu a respeito, mas muito ainda resta a alcançar.
Posto isso, estamos diante de um grande filme? Não, porque o tema, e como ele é trabalhado não basta. Acima de tudo, aqui o roteiro e a direção da cineasta espanhola Estibaliz Urresola Solaguren constroem obstáculos para a fluidez da narrativa. Num filme em que os personagens são os elementos mais importantes, é um pecado não os identificar com clareza.
Cria-se um desnecessário imbróglio para apresentar quem é quem. Até mesmo em relação ao núcleo familiar de Coco, pois custa a entendermos que as três crianças são irmãos e todos filhos do mesmo casal. Na cidade natal, no País Vasco, a confusão aumenta com mais pessoas da família. Um outro fator crucial, da mesma forma, custa a se confirmar, que é a já iniciada separação dos pais da protagonista.
Naturalismo
Ao que parece, tudo isso vem da busca pelo naturalismo. Assim, ao invés de definir logo de cara quais são as relações entre os personagens (por exemplo, “Oi, tia!”, ou “Vá chamar seu irmão!”, etc.), o roteiro quer que o espectador descubra espontaneamente. Mas, nesse processo, acaba se desviando do tema principal. E, muitos desses personagens (são demais, aliás) nem têm papel importante na trama. A irmã mais velha, por exemplo, fica ausente durante boa parte da estória. Forma-se, então, um quebra-cabeças que encrenca o andamento da narrativa.
Alinhado a esse naturalismo, vem a estética da fotografia mal iluminada, da câmera na mão o tempo todo, dos rostos mal focados, da ausência de close-ups. Com isso, a dificuldade de identificarmos, também fisicamente, os personagens, torna menos atraente o convite para mergulharmos nas suas psiquês.
O tema é essencial, de discussão urgente, e merecia um desenvolvimento à altura de sua importância.
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Ficha técnica:
20.000 Espécies de Abelhas | 20.000 especies de abejas | 2023 | 128 min | Direção: Estibaliz Urresola Solaguren | Roteiro: Estibaliz Urresola Solaguren | Elenco: Sofía Otero, Patricia López Arnaiz, Ane Gabarain, Itziar Lazkano, Sara Cózar.
Distribuição: Imovision.
Assista ao trailer aqui.