Mais que uma homenagem ao cinema no estilo nostálgico de Cinema Paradiso (1988), A Contadora de Filmes conta a saga do amadurecimento de uma garota de uma família de mineradores no deserto do Atacama no Chile e a curta existência do vilarejo em que ela vivia.
A trama se inicia quando María Margarita ainda é uma criança. Única menina de uma família com cinco crianças, María descobre o seu dom de contar estórias depois que o pai sofre um acidente e fica incapacitado de continuar seu trabalho como minerador. O dinheiro escasso obriga a cortar as despesas, inclusive a maior diversão da família: a sessão de cinema aos domingos. A partir desse momento, o dinheiro só dá para uma pessoa da família ir ao cinema. E María logo prova que possui o talento para compartilhar aos pais e irmãos o filme que assistiu. Em pouco tempo, sua contação atrai as demais pessoas da comunidade, permitindo-lhe cobrar uma pequena entrada para quem quiser ver a sua apresentação.
Como toda saga de respeito, o filme apresenta momentos de alegria e de tristeza. Assim, além da tragédia sofrida pelo pai, chega a vez da mãe María Magnolia (Bérénice Bejo) abandonar a família. Muito mais jovem que o marido, ela decide partir para seguir o seu sonho de ser uma cantora e dançarina nos palcos. O tempo passa, a menina María Margarita cresce, vira adolescente, e depois uma jovem adulta. Cada vez melhor como contadora de filmes, essa habilidade lhe ajuda a superar o estupro que sofre – o momento mais sombrio desse longa-metragem.
Direção inspirada
Os vários eventos que acontecem no enredo são bem amarrados e, por isso, se desenrolam de maneira fluída. Fruto de um belo trabalho de direção da dinamarquesa Lone Scherfig, conhecida por Educação (2009), uma coprodução Reino Unido e EUA. Um dos seus destaques é a decupagem de três cenas paralelas que desencadeiam a tragédia do pai. Numa delas, Kirk Douglas caminha pelas trincheiras no filme Glória Feita de Sangue (1957), de Stanley Kubrick. Noutra, as crianças, incluindo María, brincam de guerra nas areias do deserto. Por fim, o pai de María se arrisca no serviço quando precisam dinamitar um local.
Lone Scherfig também trabalha as correlações que faz a protagonista depois de ver a mãe em uma boate conversando com o gerente da mineradora, Hauser (Daniel Brühl), que não esconde o seu interesse por ela. Assim, quando María assiste a Se Meu Apartamento Falasse (1960), de Billy Wilder, ela vê, por um instante, o rosto da mãe na personagem da prostituta interpretada por Shirley MacLaine no filme. Já mais perto do final, María vê a mãe se apresentando no palco de uma pocilga. Então, se dá conta que o abandono da família não foi por causa da fama e do dinheiro, mas simplesmente porque estava desgostosa com aquela vida na cidadezinha mineira cuidando de um marido inválido e quatro crianças.
Por isso, quando retorna dessa viagem, María conta aos irmãos que viu a mãe e que ela seguia uma carreira de muito sucesso. A correlação, nesse caso, vem de O Homem que Matou o Facínora (1962), de John Ford, sobre a célebre frase sobre o fato e a lenda, explicada pelo pai numa cena anterior.
Ambientação e elenco
Da mesma forma, para ambientar as transformações que levam o vilarejo ao total abandono, o filme insere a eleição de Salvador Allende, do Partido Socialista, em 1970, e o posterior Golpe de Estado de 1973 que o derrubou. A fim de não deixar esses fatos soltos na trama, o roteiro embasa a necessidade de mudanças sociais na época, mostrando assim a dura vida dos trabalhadores na mineração contrastando com as regalias dos burgueses. Além disso, para envolver a protagonista, um dos irmãos se torna ativista do socialismo, assim como o melhor amigo dela, cujo pai é um dos líderes do partido. As melhorias depois da eleição de Allende são ilustradas com a chegada da escola ao vilarejo. Por outro lado, após o Golpe, a situação econômica piora, as minas são fechadas e todos vão embora do local.
Uma das forças deste belo filme está na escalação perfeita das duas atrizes que interpretam a protagonista. Alondra Valenzuela faz a María Margarita na infância, e Sara Becker na adolescência e na vida adulta. As duas são encantadoras e concentram todos os olhares quando aparecem em cena. Becker se sobressai porque vive os trechos mais dramáticos do filme. Mas, tudo isso funciona à perfeição porque as duas intérpretes são muito parecidas fisicamente e na forma como atuam, uma escolha de rara habilidade por conta da seleção de elenco.
A Contadora de Filmes surpreende. Chega com um pouco de atraso aos cinemas brasileiros, sem o respaldo de grandes premiações internacionais, mas emociona com seu roteiro bem amarrado (escrito por Rafa Russo, Walter Salles e Isabel Coixet), direção acima da média, e interpretações arrebatadoras.
Ficou interessado? Então, anote na agenda. A Contadora de Filmes estreia nos cinemas no dia 28 de novembro de 2024.
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Ficha técnica:
A Contadora de Filmes | La Contadora de Películas | 2023 | 116 min. | França, Espanha, Chile | Direção: Lone Scherfig | Roteiro: Rafa Russo, Walter Salles, Isabel Coixet | Elenco: Bérénice Bejo, Daniel Brühl, Antonio de la Torre, Sara Becker, Alondra Valenzuela, Joaquín Guzmán, Santiago Urbina, Elian Ponce, Francisco Díaz, Beltrán Izquierdo, Alfred Borner, Simón Beltrán, Max Salgado, Pablo Schwarz.
Distribuição: Diamond Films.