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A Longa Viagem do Ônibus Amarelo (poster do filme)
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A Longa Viagem do Ônibus Amarelo | Por Sérgio Alpendre

Avaliação:
9/10

9/10

Crítica | Ficha técnica

Imagens sem som. Bressane sempre gostou de cinema mudo. Mudo? Essas imagens gritam para quem quiser e puder ouvir. Depois de oito minutos, entra uma música antiga. Lembrei de E La Nave Va (1983), de Fellini, em que as cores e os sons entram aos poucos. Homenagem à evolução do cinema, sua linguagem, as atmosferas que evoca. Cinema de montagem por um dos diretores mais aptos a essa tarefa. A procura por um novo sentido para imagens “já vistas jamais vistas”.

Como no filme de Andrea Tonacci citado acima, não há didatismo algum sobre a origem das imagens e dos sons que frequentemente são dissociados delas. Podemos passar de um filme deste século para um filme dos anos 1960, voltando em seguida para um dos anos 1990. O passeio é motivado por temas, recorrências visuais ou sonoras, sintonias estéticas. Bressane fez um retrospecto livre de sua carreira, reorganizando imagens de todos os seus filmes em um novo e imenso filme, e nada melhor do que ele mesmo na escolha e na ordenação dessas imagens. Nada melhor, também, que um codiretor, Rodrigo Lima, seu montador nos últimos anos, para existir uma instância crítica.

Escadas. Sobe e desce. Principalmente sobe. Vemos como Bressane as filmou insistentemente. Degraus sempre fizeram parte de seu cinema. Após o capítulo das rememorações e dos filmes de viagens, o capítulo das escadas continua a retrospectiva de sua obra cinematográfica. A esses capítulos, Bressane chama de anéis, inspirado pelo Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, que fez com a história da arte o mesmo que Bressane faz agora com seus filmes: descobrir caminhos, guias, novos significados, eventualmente influências por trás de novas associações de imagens.

Seguindo um breve anel de portas e janelas de casarões antigos, o anel das escadas é um dos mais memoráveis, assim como a pequena sequência de palmas simulando claquetes que aparece lá pela metade do filme – e, poucos minutos depois, crianças com claquetes de verdade. Em mais de sete horas, os anéis são muitos, mas a viagem está anunciada.

O diário de viagens anteriores continua, com imagens familiares que dialogam com seus filmes, em alternâncias bem livres. Poema em primeira pessoa com imagens precárias e muito belas, porque muito pessoais.

Nas imagens de filmes, Bressane não evita os planos longos, que parecem pedir que o espectador os corte como desejar. Não corto. São planos de contemplação: das rochas, das ondas do mar, de pessoas reunidas, de uma pessoa morta. Por vezes, ele corta antes do que pode ser visto no filme original, eventualmente para favorecer algum novo sentido para as imagens, ou mesmo a dissociação de seu sentido anterior.

Num filme de montagem, o uso da música pode ser brilhantemente pensado, com trechos escolhidos e colocados de maneira a nos emocionar por alguma evocação qualquer que venha da associação com a imagem. A poesia, por vezes, se faz da liberdade com que se coloca algumas músicas para acompanhar algumas imagens. Nessas escolhas, o único grande deslize, segundo minha viciada percepção cinematográfico-musical, foi ter cortado “Stanislau Ponte Preta”, de Jorge Veiga, que aparece inteira num filme anterior de Bressane, o estupendo noir à brasileira O Rei do Baralho (1973). Quando vi pela primeira vez esse filme, fiquei fascinado pela maneira como a música foi colocada. Ter visto, aqui, só a introdução da sequência original foi um pouco frustrante.

Mas estou sendo tolo. O que me frustra neste filme majestoso, nem por isso está em desacordo com a estrutura de planos ressignificados pela junção com outros, bem diferentes daqueles a que foram juntados anteriormente. O plano de uma mulher dançando em um filme em preto e branco pode ser contraposto por planos em que uma mulher dança em filmes coloridos. O plano de um filme com Alessandra Negrini pode ser seguido pelo plano de outro filme com ela. O mesmo com Grande Otelo, ou Fernando Eiras. O que importa é o motivo, as novas rimas, eventualmente as novas formas poéticas construídas por junções por vezes das mais inusitadas. Filme de planos desconexos, sim, mas se olharmos bem, todos os filmes de Bressane são assim, e são fortes por esse motivo. Banana para a trama. Cinema não é história, mas pode ser História.

Disse Bressane, em entrevista para a Revista Limite:

“São filmes que aboliram o autor, não têm autor, não têm personagem: tem o filme! Isso é o que está naquelas 7h20min, são os filmes que estão ali. As relações, as interpretações, as intrarrelações, cada um que faça como entender; eu nunca pretendi e nem pretendo dar direção a coisa nenhuma.”

Será? Em certo aspecto, o de um cinema que se afasta de certas regras da arte, sim, ele não dá direção. Essa dimensão fica evidente quando ele cita Schiller em outro momento da entrevista, sobre o pecado de se querer direcionar o leitor. Mas nisso Bressane está igual ao que sempre esteve, em fuga desse tipo de direcionamento. Cada um que monte seu filme a partir das imagens que ele, Bressane, apresenta. Mas num plano mais íntimo, dentro do universo em que ele trabalha, a direção está dada pela ordem dos planos que Bressane escolheu para seu filme de 7h20. Não há como o espectador fugir disso.

Bressane lembra que o editor do Mnemosyne de Warburg, pensando comercialmente, fez um mapa indicando o caminho para a leitura, mas que Warburg, contrariamente, queria que cada leitor/viajante encontrasse o seu próprio caminho. Certo, mas um filme corre do início para o fim. A não ser que o vejamos em casa, num arquivo dividido em capítulos e colocarmos uma espécie de ordem aleatória, não conseguiríamos o efeito desejado. Em A Longa Viagem do Ônibus Amarelo, Bressane e Lima são os editores de Warburg.

Ele fala em anéis que serviram para estruturar o filme: as escadas, o corte, os planos-sequência, os movimentos da câmera, as danças. O espectador pode montar como quiser, mas não tem como se livrar desses anéis. A estrutura é amarrada por eles. Não se pode tentar fazer diferente sob a pena de perder a estrutura bolada pelo autor (abolir o autor é o que Bressane quer, afinal, mas penso não ser possível). É diferente num filme como Tabu, que trabalha com extensão e repetição de planos. O excedente fica explícito, mas para cada espectador será diferente. No ônibus amarelo só temos como montar os planos que Bressane escolheu a priori. Podemos alterar a ordem. Mas o filme vira ruína se assim o fizermos.

Uma coisa é inescapável. Para nós, bressaneanos de carteirinha, ver A Longa Viagem do Ônibus Amarelo dá vontade de viajar novamente por todos os filmes desse diretor.

Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.

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Ficha técnica:

A Longa Viagem do Ônibus Amarelo | 2023 | Brasil | 7h12min | Direção: Júlio Bressane, Rodrigo Lima | Roteiro: Júlio Bressane.

A Longa Viagem do Ônibus Amarelo (cena do filme)
A Longa Viagem do Ônibus Amarelo (cena do filme)
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