Em clima de constante tensão, mergulhamos numa criativa desforra das mulheres em A Mesma Parte de um Homem.
A história do filme lembra a de O Estranho Que Nós Amamos, filmada por Clint Eastwood em 1971, bem como por Sofia Coppola em 2017. Afinal, neste filme de Ana Johann, mãe e filha acolhem um estranho que desmaia à porta da casa delas, que fica isolada no interior.
O homem substituto
Esse fato acontece logo depois da morte do homem bruto que sufocava a esposa Renata e a filha Luana. Totalmente o oposto do falecido, o recém-chegado Luís é carinhoso e atencioso com elas, além de ser de uma classe social mais alta. Mas, ele está com amnésia e não se lembra quem é. Então, Renata e Luana lhe dizem que ele é o marido e pai delas.
Assim, o filme constrói um clima de muita tensão, pois essa é uma mentira que não se sustenta por muito tempo. Na verdade, a ideia parte de Renata. E sua filha Luana, aos poucos, aceita a ideia. A cada fato que elas acrescentam a essa enganação, mais evidente se torna que ele não se encaixa naquele ambiente. Afinal, enquanto ele já estudou no exterior, as duas não conhecem nada além daquele pedaço de terra onde vivem desde sempre.
Já na parte inicial, há um tom de estranheza. A personagem da mãe mal levanta a cabeça, receosa do marido, que a usa para cozinhar e fazer sexo. Igualmente, a filha quase não fala, e o pai não deixa espaço para ela explicar o machucado no rosto, provavelmente provocado por uma agressão dele. Posteriormente, o filme acentua o processo de contar a estória através das imagens, e não pelos diálogos. Como resultado, o misterioso se sobressai em A Mesma Parte de um Homem.
Autenticidade e simbolismo
E o filme transita entre o retrato autêntico e o simbolismo. De um lado, vemos as cenas de sexo muito realistas de Renata com Luís. A primeira delas é bem longa, praticamente o tempo verdadeiro da transa. Nela, vemos a mulher explodir de um prazer que ela nunca sentiu antes, em contraste com o plano muito rápido do sexo passivo com o falecido marido. Por outro lado, temos o simbolismo do homem com o sapo. Em suma, quando Luís chega à casa, vemos um sapo saltitando naquela direção. E, no final, Luana solta o sapo que ela manteve preso em um vidro durante o filme inteiro.
A paisagem contribui para esse tom sinistro. Afinal, a mata fechada, com muita névoa e moradores que pouco falam, remetem a memória do cinéfilo para os filmes ambientados no sul dos Estados Unidos. Aliás, região onde se passa a estória de O Estranho Que Nós Amamos, filme com trama semelhante. Adicionalmente, também a mesma da sinistra série True Detective. Como resultado, essas referências criam uma expectativa de uma conclusão violenta. Por exemplo, tememos que Luís descubra a verdade e tudo descambe para a violência. Ou que as duas o mantenham em um cativeiro.
Desforra
Porém, A Mesma Parte de um Homem caminha para um desfecho inesperado, justamente por fugir desses exemplos já vistos no cinema. Na verdade, a troca de olhares de satisfação entre Renata e Luana na cena final revelam a cumplicidade da desforra que elas atingiram contra os homens em geral, personificados no pobre Luís.
A Mesma Parte de um Homem é o primeiro longa de ficção da diretora Ana Johann. Uma obra que se abre para trabalhar com originalidade as influências de outros cinemas. Como resultado, pavimenta o caminho para conquistar o espectador, mas esse caminho leva a um destino inesperado. Merecidamente, com este filme, o Júri Oficial da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes concedeu o prêmio Helena Ignez para Ana Johann, como Destaque Feminino.
___________________________________________
Ficha técnica:
A Mesma Parte de um Homem (2021) Brasil. 99 min. Direção: Ana Johann. Roteiro: Ana Johann e Alana Rodrigues. Elenco: Clarissa Kiste, Laís Cristina, Irandhir Santos, Otavio Linhares, Zeca Cenovicz.