A Metade de Nós consegue reproduzir o sentimento da perda de uma pessoa muito próxima. Esse forte impacto do filme resulta de uma experiência pessoal do seu diretor Flavio Botelho, que perdeu a irmã por suicídio. Mas o desenvolvimento do roteiro torna a narrativa turva.
No longa, o casal sexagenário Francisca (Denise Weinberg) e Carlos (Cacá Amaral) enfrentam o suicídio do filho único, cada um à sua maneira. Carlos exterioriza sua tristeza em rompantes de lágrimas e falando sobre o filho. Francisca guarda tudo dentro de si e se protege da culpa que sente com agressividade e aparente indiferença.
Botelho se utiliza de vários recursos para mostrar o vazio que a partida precoce deixou. A fotografia traz um filtro que escurece todas as cenas, mesmo aquelas de dia. Os planos, na maior parte fixos, captam os cômodos vazios, com a colaboração da edição que não corta quando os personagens saem do quadro. Não há música no filme, salvo quando originada dentro da cena, gerando um silêncio que incomoda.
Os diálogos entre Francisca e Carlos se tornam cada vez mais ríspidos. A mãe não consegue falar sobre o filho, enquanto o pai encontra conforto justamente trazendo suas memórias à tona. Diante desse impasse, Carlos se muda para o apartamento do filho, satisfazendo o desejo de Francisca de ficar sozinha. Até esse momento, o drama soa consistente e forte.
A outra metade
Mas, da metade em diante, o enredo segue por caminhos errantes. Como estão ausentes truques para sabermos o que se passa na cabeça de Francisca, acompanhamos sem entender as suas atitudes. Por um lado, tenta encontrar o médico que receitou remédios contra a depressão do filho. Aparentemente, com intenções de matá-lo, mas isso não se resolve. Por outro lado, finge estar interessada em comprar ou alugar um apartamento em frente àquele onde agora mora o marido, para espioná-lo. Da mesma forma, sem uma motivação específica. São sequências confusas, ainda mais com as participações de figurantes que se parecem com Carlos.
O comportamento do pai segue numa linha um pouco mais compreensível. Ele se envolve com o vizinho do filho, que o conhecia e devia ter a mesma idade que o rapaz. Mas, o roteiro não desenvolve o que leva Carlos a esse relacionamento. Não sabemos se ele já saía com outros homens, ou se essa aproximação busca preencher a lacuna que o filho deixou.
A parte final do filme revela que a primeira cena, a da acareação com o médico, é um flash forward – totalmente desnecessário, por sinal. Além disso, ele atrapalha a narrativa, pois dá a impressão que o casal tinha visitado um psicólogo do filho. Enfim, quando o trecho entra na linearidade, cria um clímax dramático, cujo desfecho fica em suspense. Em seguida, o casal parece ter superado o luto, ou pelo menos as desavenças entre si, como parece simbolizar as águas da cachoeira que limpam as mágoas.
Pode ser que o filme pareça incompreensível para o público porque o diretor lida com um assunto que lhe é muito próximo. Para o criador, tudo isso que não entendemos certamente está muito claro. Mas o cinema não deveria precisar que os realizadores expliquem suas obras.
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Ficha técnica:
A Metade de Nós | 2023 | 89 min | Brasil | Direção: Flavio Botelho | Roteiro: Flavio Botelho, Bruno H. Castro, Daniela Capelato | Elenco: Denise Weinberg, Cacá Amaral, Kelner Macêdo, Clarice Niskier, Henrique Schafer, Justine Otondo.
Distribuição: Gullane.
Assista ao trailer aqui.