Um homem de mais de quarenta anos, Aksel (Anders Danielsen Lie), envolve-se com Julie (Renate Reinsve), que tem menos de trinta. No momento em que ela percebe estar apaixonada, após ele falar que a diferença de idade iria impossibilitar um romance duradouro entre eles, dá meia volta e toca a campainha do apartamento dele, de onde tinha acabado de sair para nunca mais o ver, por uma espécie de combinação pensada por ele e consentida, no silêncio, por ela. Ele atende à porta e eles se beijam. Na cena seguinte estão guardando os livros numa estante branca, simbolizando a união: vão morar sob o mesmo teto.
O clichê que nos remete a Woody Allen e à escola Annie Hall (Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, 1977) não nos incomoda tanto, mas Joachim Trier, o diretor (o mesmo de Oslo 31 de Agosto, 2011), coloca o foco nela, A Pior Pessoa do Mundo. É como se estivesse mais interessado na Diane Keaton, que não era a pior pessoa do mundo (ali, o personagem de Allen estava mais perto disso). Até a trilha passa a ter jazz quando eles vão morar juntos. A referência é mesmo o diretor novaiorquino de Hannah e Suas Irmãs (1986).
Estrutura em capítulos
Estruturado em doze capítulos, precedidos por um prólogo e seguidos de um epílogo, temos uma variação de qualidade e tons em que uma má ordenação pode ser prejudicial. Por exemplo, o prólogo parece um trailer, o que, sinceramente, não anima muito. Depois temos o capítulo “Os outros”, que parece pequeno burguês demais, do pior modo possível – algo como o pior Louis Malle misturado com um Claude Lelouch médio.
No segundo capítulo, a coisa finalmente engrena. Intitulado “Infidelidade”, mostra Julie entrando de penetra numa festa de casamento e se interessando por um rapaz. Como ela diz que está com alguém que ama, e ele também, combinam de só ficar na provocação mútua, em trocas de segredos, no cheiro do suor um do outro e na observação próxima durante o fazer xixi. Eles se despedem sem ter consumado a traição, embora desejassem um ao outro. Por vezes o flerte é mais potente do que as vias de fato.
Fantasia
O terceiro capítulo entrega um outro flerte, do filme com a contemporaneidade. “Sexo oral na era #metoo”. Mas é tão curto que não dá nem para dizer que eleva ou rebaixa o nível do filme. Passa como um interlúdio para os capítulos seguintes. Mais um capítulo se passa e chegamos finalmente ao quinto, aquele cuja apreciação me parece fundamental para a adesão ao filme. Intitulado “Hora Errada”, é nele que o rapaz com quem ela havia flertado na festa do segundo capítulo, que se chama Eivind (Herbert Nordrum), aparece com a esposa na livraria em que Julie trabalha. Ele finge ter esquecido alguma coisa para voltar e se declarar a Julie.
Numa cena de fábula, mais adiante, o tempo se interrompe e todas as pessoas do mundo (ou de Oslo) ficam paralisadas quando Julie liga a luz de um balcão de cozinha. Ela então vai encontrar Eivind no café onde ele trabalha. Eles se beijam, conversam, juram amor eterno (ao menos nos olhares), e Julie volta para casa, desligando a mesma luz no mesmo interruptor e interrompendo o feitiço, apenas para dizer que está tudo acabado entre ela e Aksel.
Talvez esse tipo de cena de fantasia funcione dependendo do nosso nível de adesão anterior. Se havia dúvida, como aconteceu comigo, o filme se perde a partir desse momento, que é o do cartaz do filme, aliás. Até a câmera boba começa a incomodar. Mas, imagino que cinéfilos mais tolerantes com esse tipo de poesia que parece saída a fórceps dos anos 1990 tenham amado esse momento. A mim, pareceu “poesia a priori” (como dizia Truffaut), a partir da qual todos os outros momentos em que o filme cai no nonsense algo mais parece se quebrar em sua estrutura.
Não se trata obviamente de condenar essa abertura ao fantástico, ao onírico ou ao surreal. É apenas uma questão de entender que nem todos os diretores ou diretoras trabalham bem dentro desse registro, de tal forma que ele parece agredir o outro registro, o da comédia romântica, que sempre ameaçou se impor em todo o filme. Em outro filme, poderia ser uma maravilha essa abertura. Afinal, quem acompanha este crítico sabe do cansaço com essa busca pelo real a qualquer custo. Neste filme de Trier, especificamente, essa sequência não me pareceu se encaixar.
Mal-estar
O capítulo chamado “O mal-estar na cultura” surge após uma entrevista na TV em que Aksel questiona o politicamente correto e o pós-feminismo, o que poderia ser uma autocrítica à cena que acabáramos de ver, de Julie sob efeito de drogas achando que seu corpo era todo flácido, como o de uma mulher muito idosa. Por mais que Aksel tenha certa razão no que fala sobre a arte (principalmente quando diz que não precisa ser agradável), o tipo de viagem do filme me incomoda não por ser desagradável, mas por parecer meio tolo dentro do que havíamos visto até então. Portanto, não funciona como autocrítica.
Mas, esse capítulo do mal-estar, o décimo, não vai discutir exatamente isso. Ele vai introduzir a doença de Aksel: um câncer no pâncreas que se espalhou rapidamente para outras regiões do corpo. O filme então adquire ares de drama, em que o romance se torna quase um problema. Talvez também porque a interação de Julie com Aksel seja sempre mais interessante do que a interação dela com Eivind, a não ser quando eles permaneciam estranhos um para o outro, naquele já longínquo segundo capítulo.
Os dois capítulos finais têm alguma força justamente por causa dessa interação com Aksel, que vai justificar toda a melancolia de Julie – devia ter continuado com ele? Seria mesmo uma boa mãe, como Aksel disse certa vez? Julie está claramente perdida, embora longe de ser a pior pessoa do mundo, como informa o título. Mas Joachim Trier parece não saber como terminar seu filme, assim como não soube começar, o que faz com que o epílogo seja decepcionante.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
A Pior Pessoa do Mundo | Verdens verste Menneske | 2021 | Noruega, França, Suécia, Dinamarca | 128 min | Direção: Joachim Trier | Roteiro: Joachim Trier, Eskil Vogt | Elenco: Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie, Maria Grazia Di Meo, Herbert Nordrum, Hans Olav Brenner, Mia McGovern Zaini, Olav Stubberud.