Na crítica anterior, exaltei o uso corajoso da forma em Uski Roti (1970), por Mani Kaul, como expressão política, denunciando a frágil posição feminina dentro da sociedade indiana. Por sua vez, Ankur, de Shyam Benegal, vai além da exposição do problema para chegar à chamada para a ação. Benegal afirma, através de seu filme, que para mudar uma ideologia dominante, é preciso força, tanto moral quanto física.
O poder dos latifundiários
Ankur se passa nos anos após a libertação da Índia (1947), num ambiente rural onde os latifundiários mantêm suas propriedades e seu poder acima das leis. Mas, a história começa na cidade, com Surya (Anant Nag) acabando de se formar e pronto para ir para a faculdade. O jovem tem a empolgação e um idealismo próprios de sua idade, mas que, veremos durante o filme, não passam disso. Quer fazer faculdade de Artes, mas o pai, um latifundiário rico, o obriga a cuidar das terras no interior. A revolta de Surya contra o pai vem de antes, pois o jovem não aceita que ele tenha assumido a paternidade de um filho bastardo com uma outra mulher no campo. Surya protesta para a mãe, mas esta diz para ele não se meter. Num tradicional casamento arranjado, Surya se casa com uma adolescente. Então, parte para o interior para cuidar da propriedade do pai – sozinho, pois a esposa ainda não tem idade para morar com ele.
O rapaz leva para o campo um pouco de seu idealismo. Assim, não tem problema em tomar o chá preparado pela empregada Lashmi (Shabana Azmi), quebrando uma tradicional regra sobre as castas na Índia. Tenta, além disso, ajudar o marido surdo-mudo de Lashmi, dando-lhe emprego na fazenda. Revela-se, ainda, um bom vizinho, ao se integrar com alguns moradores da vila para jogar cartas. O marido de Lashmi, no entanto, é um bêbado. Apesar dos avisos da esposa, ele continua a beber. Certa vez, um menino cagueta o pega roubando suco. Como resultado, é demitido e resolve fugir de casa.
Romance interrompido
O filme, então, parece que se encaminhará para uma história romântica. Surya se interessa por Lashmi e, aos poucos, os dois vão se aproximando. Porém, diferente de um drama romântico típico, a chegada da esposa de Surya ao completar sua maioridade interrompe o caso amoroso. E o filho do latifundiário começa a repetir os passos do pai. Ou seja, engravida a empregada e pensa em arrumar uma terra para a amante e o filho que está para nascer. Porém, o jovem é até pior que o pai, pois assim que a esposa chega começa a desprezar totalmente Lashmi. A volta inesperada do marido de Lashmi, piora ainda mais a situação. Por um lado, significa que a moça perde a possibilidade de ganhar um pedaço de terra. Por outro, quando o marido aceita a situação e resolve pedir emprego para o patrão, este, pensando que sofrerá uma agressão, chama seus empregados e açoita o surdo-mudo, que não consegue se explicar.
A intervenção de Lashmi, que até então esteve sempre passiva no filme, salva o marido. Seu apelo é contundente: “Não somos seus escravos!”. A frase diz tudo sobre a prepotência de Surya. Antes um idealista, ele fraqueja diante das imposições sociais, e se porta como todos os latifundiários exploradores como o seu pai, perpetuando essa situação de dominação.
O diretor Shyam Benegal, não satisfeito apenas com esse bravejo da protagonista, ainda insere um rápido epílogo. Aquele moleque cagueta, que novamente intervira a favor do patrão na cena anterior, descobre o valor da Justiça. Num ato simbólico, arremessa uma pedra contra os vidros da janela do latifundiário, deixando claro que a população agrária não pode mais aceitar essa circunstância sem reclamar.
Forma e mensagem
À parte a temática, o diretor Benegal recorre ao cinema clássico para melhor expressar sua mensagem. Mas o faz de forma criativa, e nunca burocrática, permitindo que a imagem comunique os sentimentos velados. Assim, de maneira apropriada, vemos uma das primeiras aproximações de Surya em relação a Lashmi no momento no qual ela está colocando a sua marca na testa (que indica que ela é casada) de frente ao espelho, e o seu patrão surge em segundo plano. Outro bom exemplo da boa direção de Benegal está na cena na qual a esposa abre uma porta dentro da casa, em primeiro plano, e Lashmi fecha outra ao fundo. Esse plano indica que a esposa está agora assumindo sua posição de mulher da casa, antes ocupada pela empregada.
Em Ankur, a forma é apropriada, e a mensagem urgente. Shyam Benegal faz do cinema o mensageiro que conclama a revolução.
___________________________________________
Ficha técnica:
Ankur | 1974 | 125 min. | Índia | Direção: Shyam Benegal | Roteiro: Shyam Benegal, Satyadev Dubey | Elenco: Shabana Azmi, Sadhu Meher, Anant Nag, Priya Tendulkar, Aga Mohamed Hussain, Mirza Qadirali Baig.