O filme Aquarius sedimenta algumas características autorais do diretor e roteirista Kleber Mendonça Filho demonstradas em seu primeiro longa-metragem, O Som ao Redor (2012). Novamente, a estória acontece em Recife num bairro de classe média. Além disso, a crítica social de novo se encontra no centro da trama e o diretor transmite um tom de estranheza. O público sente que algo não está funcionando bem. Porém, desta vez Kleber Mendonça Filho se restringe a uma trama única e a um só personagem protagonista, ao invés das múltiplas estórias de vários personagens de seu filme de estreia. E isso permite um aprofundamento que torna Aquarius um filme mais atraente.
A viúva
Sônia Braga vive Clara, a protagonista de Aquarius. Aos 65 anos, viúva e mãe de três filhos adultos, Clara vive sozinha em um apartamento grande, em um antigo condomínio de poucos andares de frente para a praia de Boa Viagem. Ela é a única proprietária que não aceitou vender seu imóvel para uma empreiteira que deseja construir um empreendimento moderno no local. Por isso, sofre pressão dos compradores, que tentam tornar a vida ali difícil, através de atos não convencionais. Por exemplo, autorizar festas barulhentas e reuniões de igreja no local, até medidas mais radicais que comprometem a edificação.
Porém, o filme não se restringe a uma sucessão de tentativas de convencer Clara a vender seu apartamento. Na essência, há um empenho enorme em desenvolver a personalidade dessa protagonista, para entendermos seus motivos para permanecer no local. Então, descobrimos que nostalgia é muito cara para ela, e a montagem de fotos em preto e branco do alto de Recife, durante os créditos, já começa a construir essa ideia.
Nostalgia
A primeira parte do filme se passa em 1980, em uma animada festa nesse apartamento, cheia de gente para comemorar o aniversário da sua tia Lúcia. Clara acaba de passar por um tratamento de câncer de mama. Habilmente, Kleber Mendonça Filho coloca uma transição do apartamento lotado de amigos e familiares dançando para o mesmo plano com o local vazio, nos dias atuais. Os únicos elementos que continuam são Clara e a mesma música, que ela ouve em um toca-discos, revelando o vínculo nostálgico da personagem, que ainda é reforçado por um pôster do filme Barry Lyndon, de 1975, e a enorme coleção de LPs que ela mantém.
Sua solidão é quebrada pelo convívio diário com sua empregada doméstica Ladjane e pelas habituais idas à praia, onde pratica atividades em grupo, entra na água e mantém uma amizade com o salva-vidas Roberval. Somente perto do meio do filme é que conhecemos os filhos de Clara, em um encontro que se assemelha à reunião de condomínio de O Som ao Redor. Os filhos, principalmente Ana Paula, insistem para que Clara ceda às pressões da empreiteira e venda o apartamento, o que acaba numa discussão acalorada.
Músicas
Aquarius desfila uma bela coleção de músicas, principalmente dos anos 1970, época mais marcante na vida de Clara. Além de MPB, canções do Queen também estão na trilha sonora da protagonista.
Mas, se as músicas ajudam na fluência do filme, Kleber Mendonça Filho contra-ataca com vários elementos que causam a estranheza que já vimos antes no seu primeiro filme. Alguns planos não são convencionais. Afinal, a câmera enquadra detalhes do condomínio de Clara que normalmente não entram num filme, como cantos e paredes nada bonitos fotograficamente, e até um rápido plano do neto de Clara cheio de cocô sendo limpado pela mãe. Além disso, há várias sequências que não movem a narrativa, mas que são essenciais na construção da personagem principal. Por exemplo, a relação de afeto de Clara com o sobrinho e a festa de aniversário de Ladjane.
O momento mais autoral, contudo, encontramos na cena final. Ela conclui o filme antes de apresentar a solução definitiva da trama, deixada por contra do espectador. Mesmo assim, o filme Aquarius possui uma abordagem mais direta da sua história, diferente da alegoria presente em O Som ao Redor. Por isso, Aquarius pode ser digerido com mais facilidade pelo público, principalmente por contar com uma estupenda atuação de Sônia Braga. A atriz é um verdadeiro furacão na tela em sua luta solitária contra os poderosos, favorecida por um personagem tão eficientemente construído que nos solidarizamos com seus motivos para permanecer em seu apartamento.
Ficha técnica:
Aquarius (2016) Brasil. Brasil/França. 146 min. Dir/Rot: Kleber Mendonça Filho. Elenco: Sônia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Humberto Carrão, Zoraide Coleto, Carla Ribas, Fernando Teixeira, Buda Lira, Paula De Renor, Barbara Colen, Daniel Porpino, Pedro Queiroz, Germano Melo, Julia Bernat, Thaia Perez.