A animação brasileira Arca de Noé, realizada em coprodução com a Índia e os Estados Unidos, está sendo promovida como a maior do gênero já realizada por aqui. De fato, sua qualidade visual logo salta aos olhos, certamente resultante de um orçamento superior aos filmes nacionais em desenho animado lançados até agora. Os melhores destes, porém, compensavam a falta de recursos com invejável criatividade.
Uma das prováveis garantias de retorno oferecidas pelos produtores deve ter sido o fato de o filme se basear nos poemas do livro “A Arca de Noé”, de Vinicius de Moraes, e nas famosíssimas canções que derivam delas, como “A Casa”, “O Pato” e “O Leão”.
No entanto, o livro de Vinicius de Moraes é uma coleção de poemas sem uma narrativa. Então, coube aos realizadores do filme criarem uma. A solução mais óbvia, inspirar-se no título, talvez fosse também a mais atrativa comercialmente, pois poderia apelar para o público cristão. O problema, no entanto, é que dessa premissa não surgiu uma aventura minimamente interessante. E, na impossibilidade de entrelaçar as canções no meio da estória, requisito básico das animações musicais, o jeito foi apelar para a batida ideia do concurso de talentos, com os animais da arca apresentando as músicas.
A arca furada
O filme começa muito mal, com diálogos tolos antecedendo a aparição dos protagonistas, os ratinhos Vini e Tom (nomes nada criativos, por sinal). Quando estes surgem, a música “A Casa” está totalmente fora de sincronia com o movimento de suas bocas – erro imperdoável para uma animação que se vende como a maior produção do gênero. O som de fundo, então, já antecipa um incômodo que se repetirá durante todo o longa: o barulho é de uma plateia imensa, o que não condiz com o que a cena mostra.
O enredo em si não faz sentido. Como na história bíblica, Noé só permitia a entrada de um casal de cada animal, Vini e Tom teriam que tirar a sorte para ver quem seria o par da ratinha Nina. Mas, um deles acaba se sacrificando e ficando propositalmente de fora. Resta a este juntar-se à barquinha dos rejeitados, a maioria insetos. É claro que o acaso os reunirá novamente, num momento em que o leão se impunha contra os demais, ajudado pelos outros animais mais ferozes. O leão, que simboliza um ditador, tenta falar empostado, mas uso o Português de forma incorreta é uma piada frequente que logo se torna insuportável. Ainda sobre as falas, o uso de termos descolados tenta dar modernidade ao filme, mas isso tampouco tem graça.
Músicas desconectadas com a história
A narrativa é acelerada, sem nunca desenvolver devidamente as cenas e os personagens. Uma pomba se caracteriza por ser insegura, mas o filme não justifica por que ela é assim. Da mesma forma, o motivo do bode ser sábio nunca se explica.
Além disso, o enredo força situações que não contribuem para a narrativa, como a baleia que ajuda a pomba a encontrar terra firme. Evento esse que acontece em paralelo com o concurso de música, sem que um tenha a ver com o outro. O concurso soa também furado, pois o filme nem explica as suas regras, nem quem faz parte do júri. Além disso, o desmascaramento do leão, que não sabe cantar, copia descaradamente Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952).
Por fim, já que não conseguiram criar um enredo razoável para reunir os poemas musicados de Vinicius de Moraes, seria mais sensato produzir videoclipes delas. Porém, isso já foi feito na coleção Galinha Pintadinha, que teve um sucesso estrondoso.
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Ficha técnica:
Arca de Noé | 2024 | 95 min. | Brasil, Índia, EUA | Direção: Sérgio Machado, Alois Di Leo | Roteiro: Sérgio Machado, Heloisa Périssé, Ingrid Guimarães | Vozes de: Rodrigo Santoro, Marcelo Adnet, Alice Braga, Lázaro Ramos, Gregório Duvivier, Bruno Gagliasso, Monica Iozzi, Adriana Calcanhotto.
Distribuição: Imagem Filmes.