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As Mortes de Dick Johnson (filme)
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As Mortes de Dick Johnson | Por Solange Peirão

Avaliação:
8/10

8/10

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Crítica | Ficha técnica

Nas últimas semanas, as mortes de figuras exponenciais no universo da música e da arte nos assombraram. Na verdade, esse sentimento de dor é ainda mais pesado porque reafirma e escancara aquela tristeza difusa pelas perdas coletivas da pandemia. E se agrava no contexto de nosso país, marcado pela aberração e desesperança dos últimos tempos. Ter visto As Mortes de Dick Johnson, disponível na plataforma Netflix, aliviou as tensões. Recomendo.

Trata-se de uma iniciativa da experiente documentarista americana, Kirsten Johnson, que propõe ao seu pai Dick, psiquiatra, fabular sobre seu fim. Mais do que isso, sobre a trajetória de alguém a caminho da perda da memória, num diagnóstico presumido de Alzheimer.

O que torna o filme especial, no conjunto daqueles que recentemente abordaram o tema é, evidentemente, o fato de ser um caso real, ficcionando sobre a doença e a morte do protagonista. Não por acaso pai e filha, que precisarão descobrir o ponto de equilíbrio entre o afeto que os une e o distanciamento objetivo necessário para viabilizar o projeto. E conseguem.

Uma proposta tão pouco usual seria, e foi, possível porque deixou-se colorir fortemente pelos artifícios da imaginação, mais próprios da ficção. E esse jogo inédito, de carga amorosa intensa – afinal trata-se de lidar conscientemente com a própria morte –, só poderia dar certo se houvesse muito senso de humor envolvido. E houve.

Aliás, o esquema dual, realidade e fantasia, percorre esse jogo. Experimentar o próprio caixão, que vai ser o centro da cena final do filme, assistido por toda equipe de filmagem e seu melhor amigo, e tirar ainda uma soneca, não é para os fracos. Depois, acordar dizendo: “não se trata de fantasia, precisamos é estar preparados…”

O roteiro

Dois eixos principais marcam o roteiro: a vida de Dick na fase em que a doença se anuncia, progride, e a fabulação em torno das mortes possíveis de Dick Johnson.

No primeiro, encaram-se as rupturas. O abandono da casa ampla de toda uma vida, abrigo da família extensiva, bem-sucedida, em uma cidade americana pequena, pacata, para então encarar Nova Iorque, um quarto no pequeno apartamento da filha. Essa situação rendeu, no filme, algumas observações duras e belas: a lembrança da esposa, já antes acometida também pelo Alzheimer, no momento em que deixa a casa pela clínica; as artimanhas da filha para justificar a venda do carro do velho pai, que não mais se dava conta de que circulava com pneus furados. E, quando num abraço ele chora e tudo compreende, vem então a firme declaração de que vale abrir mão das coisas, para estar perto dos que ama.

A vida de Kirsten, por sua vez, em Nova Iorque, é a antítese, a expressão de uma nova dinâmica familiar contemporânea. Dois filhos de pais diferentes, mas que moram todos, lado a lado, no mesmo corredor de apartamentos, cada pai com seu filho. E Kirsten entre eles, que agora recebe Dick nesse universo. Resulta, no mínimo, num cotidiano muito prático e divertido.  

Fim da vida profissional

Outra importante ruptura é o fim da vida profissional. Fechar o consultório. Mudar, de própria voz, o recado da secretária eletrônica: “o Dr. Richard Johnson aposentou-se, procure o Pronto Socorro, em caso de doenças mentais…”  

E é nesse espaço, já meio revirado pela finalização, que se introduz uma das condutas da produção para fabular sobre as mortes de Dick: a entrevista para contratação de um dublê. Sim, porque de um candidato ao Alzheimer, todos os tipos de acidentes são esperados: um tombo na escada, um encontrão nas ruas da cidade permanentemente em obras.

Condução de Dick

Curioso que seja o próprio Dick a conduzir a entrevista e não a diretora-filha. Parece mais o psiquiatra com seu paciente. O candidato a dublê explica e dramatiza, com muito humor, como age nas diversas situações de perigo. Vivenciam, na prática, uma dramatização. Trocam impressões sobre perigo, sobre suicídio, e o velho médico finalmente ouve do dublê, ao perguntar-lhe por que fez essa escolha profissional, a resposta tocante: “porque amo o cinema, amo todo esse clima em torno dele.”

Obviamente que as várias mortes que serão programadas incluem desde os tais tombos e acidentes na calçada até o reviver de um enfarte cardíaco grave que Dick sofreu há mais de trinta anos. Precedido, vejam só, pelo prazer de comer avidamente três gordas fatias de bolo de chocolate!

Bolo de chocolate e pipoca, caindo do céu direto na língua da boca escancarada de Dick, marcam o recurso fílmico que introduz, por meio de bonecos animados de papel e fotografia, as cenas oníricas. Elas reproduzem o purgatório e o paraíso, para esse Dick, adventista, onde os prazeres proibidos, as pessoas amadas, as culpas e os agentes repressores se entrelaçam, constituindo algumas das situações mais bonitas do filme. Assim, o inconsciente marca presença, já que estamos falando das mortes de um psiquiatra.

Passeios

Outra bela fabulação ficou por conta do passeio da família toda, nas calçadas da cidade, em Dia de Halloween. Dispensável registrar de que maneira exemplar as fantasias proporcionaram o clima fantasmagórico adequado ao roteiro.

Todos passeavam, menos Dick, que foi “esquecido” na sala de um dos apartamentos. O medo extremo que se abateu sobre ele já prenunciava sua fragilidade física e mental. E as cenas que reproduziram esse estado de alma foram inspiradas em passagens aterradoras clássicas do cinema mudo, que caiu como uma luva para remeter, mais uma vez, ao inconsciente.

Chegou, enfim, a hora de morrer. Teve velório típico americano, com sala cheia de parentes e amigos, função religiosa, discursos emotivos. E, de novo, o jogo entre realidade e fantasia deu o tom. O final de As Mortes de Dick Johnson esteve à altura do que prometeu no começo e que foi, pouco a pouco, se adensando. Enfim, culminou com muito humor, entregando cenas engraçadas.

E comoventes, também. A cineasta, que só aparecia de corpo inteiro enquanto falava como filha, fecha o documentário com uma declaração amorosa, “quando o pai é também seu melhor amigo”, e uma observação ambígua, “só sei que Dick Johnson está morto, longa vida Dick Johnson.”

Texto de autoria de Solange Peirão, historiadora e diretora da Solar Pesquisas de História.


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