O diretor inglês Terence Davies retoma em Benção (Benediction, 2021), seu mais recente longa, o tema de seu anterior, Além das Palavras (A Quiet Passion, 2016), ou seja, a biografia de um artista de outra época. Mas o faz com o sinal invertido. O biografado agora é um poeta inglês, Siegfried Sassoon (1886-1967), famoso especialmente no final dos anos 1910 e no começo dos anos 1920, quando se envolveu com a aristocracia artística inglesa.
O outro filme era sobre a poetisa americana Emily Dickinson (1830-1886), que morreu um pouco antes do nascimento de Sassoon e teve seu momento áureo na década de 1860. Além das Palavras é provavelmente o maior filme de Davies, mas Vozes Distantes (Distant Voices, Still Lives, 1988), seu primeiro longa, é de uma beleza apaixonante, e Benção não fica muito atrás.
O fato de ser um homem, não uma poetisa americana, o protagonista deste novo longa muda muitas coisas. Primeiro porque até os anos 1920, o papel da mulher na sociedade era meramente observacional, cabendo às artistas e ativistas o papel de enfrentar a tirania dos homens. No século 19, ser mulher trazia muito mais obstáculos para qualquer artista, e toda a biografia está norteada por essa condição. Sassoon, por outro lado, podia mudar os rumos de sua história.
Uma vida às escondidas
Mas Davies acentua em um detalhe que poderia significar o calcanhar de Aquiles para o poeta numa sociedade conservadora como a inglesa: sua vida homossexual que ele procurava disfarçar com modos mais discretos que o de seus amantes, sobretudo os do ator Ivor Novello (Jeremy Irvine) e do aristocrata Stephen Tennant (Calam Lynch). Sassoon (Jack Lowden) faz um movimento ainda maior para dentro do armário: casa-se com uma mulher e tem com ela um filho.
Davies flagra, contudo, a frustração existencial de viver uma vida às escondidas, de não poder mostrar livremente seus desejos. Em algum momento comenta-se a condição do homossexual naquela época, mesmo que o mundo, no início dos anos 1920, já respirasse uma euforia mais permissiva, dos chamados anos loucos.
Percebe-se mais uma vez o gosto do cineasta para a poesia cinematográfica, especialmente na pontuação, com cortes impressionantes em sua modernidade, rompendo com um classicismo de encenação que prima pela precisão dos enquadramentos e para os documentos históricos.
Davies mais uma vez se apropria do melhor do clássico e do melhor do moderno para fazer um cinema cujo barroquismo anda de mãos dadas com o classicismo e o romantismo. E realiza no processo uma interessante mistura de tempos, dos anos 1920 aos anos 1950, para mostrar como essas vidas vividas pela metade sofreram todas, cada qual a seu modo, as imposições de uma sociedade castradora.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Benção | Benediction | 2021 | Reino Unido, EUA | 137 min | Direção e roteiro: Terence Davies | Elenco: Jack Lowden, Lia Williams, Tom Blyth, Jeremy Irvine, Anton Lesser, Kate Phillips, Julian Sands, Peter Capaldi.
Este filme está na programação da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (20 de outubro a 2 de novembro de 2022).