Apesar de considerado hoje um dos melhores filmes de Jean Renoir, A Besta Humana não é unanimidade. Um dos maiores críticos de cinema da França, André Bazin, quando escreveu sobre o filme, restringiu-se a opinar que Renoir realizou um filme melhor do que o fraco romance de Émile Zola. Enfim, o que é inegável é a ousadia do diretor.
A força do filme A Besta Humana está nas imagens. Logo no começo, após uma desnecessária introdução sobre o romance de Zola, entra nas telas o trem. Poderoso, agressivo, a sua fornalha queima ardentemente, o apito soa como um grito humano, as engrenagens movem velozmente suas rodas. Renoir posiciona, com coragem, câmeras em uma locomotiva real, a centímetros dos postes e das paredes dos túneis ao longo dos trilhos. Sem dúvida, essa opção por filmar em locação proporciona um realismo que fortalece o filme.
Então, a apresentação de um dos personagens principais vem na sequência. Quem comanda com destreza a locomotiva é Jacques Lantier (Jean Gabin), vestindo máscara de proteção, um acessório que simboliza sua ocasional crise de transtorno de identidade.
A trama
Quando o trem chega à estação Le Havre, surge outro protagonista. Roubaud (Fernand Ledoux) é o chefe da estação, um funcionário da ferrovia como Lantier. Ele é marido da personagem feminina mais importante do filme, Séverine (Simone Simon). O relacionamento do casal não é dos melhores, e se deteriora de vez quando Lantier descobre que sua esposa foi amante de seu padrinho, o ricaço Grandmorin. Rancoroso, Roubaud assassina esse ex-amante, forçando Séverine a ser sua cúmplice.
Em paralelo, descobrimos a faceta obscura de Lantier, quando ele tenta estrangular uma jovem, após forçar um beijo. O trem se aproxima e o faz voltar à razão. Ele declara que esse desvio de comportamento ele herdou dos ascendentes alcoólatras.
Como Lantier se encontrava próximo do local do assassinato de Grandmorin em um trem, ele acaba conhecendo Séverine. Em pouco tempos, os dois se tornam amantes, mas reviravoltas desencadearão um destino trágico.
A direção
No entanto, talvez encontremos a maior ousadia de Renoir na sequência da nova tentativa de estrangulamento de Lantier. Ao invés de manter a câmera no local da ação, um corte leva as imagens para uma festa, onde um cantor interpreta com humor a canção “Le Petit Coeur de Ninon”. Quando retorna ao quarto, a vítima já está morta.
Além disso, a estória também é bem corajosa. Em tempos que antecedem a Segunda Guerra Mundial, A Besta Humana antecede o conceito de não aceitar o maniqueísmo. Ou seja, os personagens não são totalmente bons ou maus. Na verdade, os três protagonistas são capazes de matar e de trair, e a guerra logo viria a colocar os seres humanos em xeque.
Por outro lado, a trilha sonora, composta por Joseph Kosma, se destaca como o ponto fraco de A Besta Humana. Em muitas cenas, suas melodias e arranjos musicais não combinam com o que se passa na tela. Por exemplo, os momentos de suspense recebem uma trilha com tons alegres, que acabam afastando o sentimento de inquietação do espectador.
Ainda assim, A Besta Humana envolve o espectador, ansioso por conhecer o destino dos personagens que se afundam numa decadência moral da qual não poderão escapar. Nesse sentido, encontramos no longa metragem características de film noir.
Por fim, surge Lantier novamente no comando de uma locomotiva, controlando com destreza as forças desse animal motorizado. Porém, contraditoriamente, agora sabemos que ele é incapaz de conter seu impulso assassino.
Ficha técnica:
A Besta Humana (La Bête Humaine, 1938) França, 100 min. Dir/Rot: Jean Renoir. Elenco: Jean Gabin, Simone Simon, Fernand Ledoux, Blanchette Brunoy, Gérard Landry, Jenny Hélia, Colette Régis, Claire Gérard, Charlotte Clasis, Jacques Berlioz, André Tavernier, Jean Renoir, Julien Carette.
Assista: a conversation with Jean Renoir