Um melômano, ao ver um filme chamado Blue Jean, lembra logo da canção de David Bowie, mesmo que esta esteja em um de seus discos menos felizes, o ainda assim bem interessante “Tonight” (1984). Começa o filme e fica difícil não associar a protagonista ao próprio Bowie. Não por ela ser lésbica e Bowie ter sempre reiterado uma presença andrógina em público, ao menos até o início dos anos 1980. Mas pelos traços de seu rosto, muito semelhantes ao do músico. Terá sido proposital?
O filme é inglês, como Bowie, e se passa no final dos anos 1980, época em que a diversidade sexual começa a viver uma nova explosão, movida a acid house e batidas eletrônicas frenéticas. Mas pouco o diferencia, digamos, de um filme independente americano contemporâneo. É uma maneira de apontar que algo nele é muito genérico, o que até certo ponto incomoda.
O mesmo tipo de trilha sonora, a mesma decupagem, o mesmo tempo de corte, a mesma estruturação narrativa – o que pode ser uma vantagem, pois até os anos 1990 os filmes ingleses ou eram inventivos como os de Derek Jarman e Terence Davies, ou eram secos e sisudos como alguns de Ken Loach e Mike Leigh. Temos apenas o sotaque típico do norte da Inglaterra para marcar a geografia.
Na trama, Jean (Rosy McEwen) é uma professora de educação física que namora Viv (Kerrie Hayes), mas tem problemas para assumir a relação e sua homossexualidade em público. Por isso ela finge não ouvir as ofensas das alunas e apresenta a namorada como uma amiga para o sobrinho pequeno.
O recuo no tempo é fundamental para entendermos parte do dilema de Jean. Ao contrário de Viv, que está totalmente em paz com sua orientação sexual, Jean parece viver num pêndulo entre a aceitação social em uma sociedade conservadora e o que seu coração diz. Nos encontros com outras amigas lésbicas, percebemos que Jean é mais feminina, delicada, enquanto as outras todas trazem consigo as marcas da afirmação, geralmente marcado por um visual punk.
Esses parâmetros (lésbicas menos ou mais masculinizadas, visual agressivo a uma sociedade careta), obviamente, quase não existem mais, já que a diversidade está bem mais aceita na sociedade, apesar de inúmeros atritos com quem se recusa a admitir a felicidade dos outros. Mas no final dos anos 1980, ainda eram fortes, a ponto de Jean sofrer mais do que sua namorada e as amigas, que afrontam olhares reacionários que encontram, enquanto Jean recua, disfarça, sente-se claramente incomodada como se dela não se esperasse tamanho “acinte”.
Assumir-se homossexual numa sociedade conservadora desse jeito deve ser difícil mesmo que a homossexualidade não seja mais crime, como na época de Oscar Wilde. Jean se esforça para impor autoridade às alunas, mas nem sempre consegue. Mesmo suas companheiras de trabalho não a respeitam como mereceria. A equação da vida pública num contexto desafiador e da relação com outra mulher, é algo que Jean terá de resolver consigo mesma.
É fácil perceber que em nossa sociedade ainda prevalece o ideal da “família normal heterossexual”, o que torna o visionamento deste filme um tanto amargo. Jean continua vendo os pronunciamentos fascistas na TV quando tem a liberdade de parar e fazer outra coisa. Nós temos de ver o desfile incessante de fascistas para chegar ao fim do filme, embora também possamos desistir no meio, já que o filme, se não é de fato ruim, também não é um exemplo de bom cinema.
É parte do processo se revoltar com tramas ficcionais para exercitar o espírito de recusa com o que encontramos, por vezes de modo mais inverossímil, na realidade. Ficamos tristes porque Jean é uma pessoa triste (blue Jean). A aceitação e o enfrentamento das forças retrógradas a fariam bem, mas é difícil chegar a esse ponto quando tudo conspira contra. Ainda mais quando até o próprio filme que ela protagoniza coloca música de terror enquanto duas garotas se beijam no vestiário.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Blue Jean | 2022 | 97 min | Reino Unido | Direção e roteiro: Georgia Oakley | Elenco: Rosy McEwen, Kerrie Reyes, Lucy Halliday, Lydia Page, Stacy Abalogun, Amy Booth-Steel, Aoife Kennan, Scott Turnbull.
Distribuição: Synapse.
Trailer aqui.