A carreira de Eduardo Coutinho (1933-2014) é errática. Próximo do cinema novo nos anos 1960, acabou trilhando o caminho televisivo na década seguinte, até voltar ao cinema com Cabra Marcado para Morrer (1984), longa iniciado e interrompido em 1964 e finalizado vinte anos depois. Mas foi só na chamada retomada do cinema brasileiro, nos anos 1990, que se criaram as condições para que Coutinho filmasse com regularidade, o que fez desde Santo Forte (1999), tornando-se o mais celebrado documentarista brasileiro, com filmes como Edifício Master (2002), O Fim e o Princípio (2005), Jogo de Cena (2007) e Moscou (2009). Até seu falecimento, tornou-se um norte para cineastas brasileiros que trabalhavam para deixar mais difusa a fronteira da ficção com o documentário.
E é justamente nessa difusão de fronteiras que Cabra Marcado para Morrer fora concebido nos anos 1960. Enquanto acompanhava o grupo teatral itinerante UneVolante para um documentário, Coutinho soube do assassinato de João Pedro Teixeira, um líder camponês, e teve a ideia de fazer um longa com a viúva, Elizabeth Teixeira, outros familiares e companheiros de luta. Seria algo claramente influenciado pelo cinema de Jean Rouch, pois os personagens reais iriam interpretar situações que costumavam viver, mas provocados por um ímpeto ficcional.
O golpe militar pôs fim à ideia e o que sobrou ficou arquivado por anos. No início dos anos 1980, Coutinho resolveu voltar à região, na Paraíba, para seguir o paradeiro daqueles personagens por outros sertões nordestinos, notadamente o de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, onde Elizabeth ficou escondida sob um outro nome até 1981. O filme que vemos é o resultado do reencontro com aquelas pessoas, que eram então outras pessoas, duas décadas depois, e de uma família, Teixeira, que se separou nos anos da ditadura e agora tenta se reencontrar, graças à abertura.
Aventura do desconhecido
Considerado um marco do documentário brasileiro e um dos maiores filmes dos anos 1980, Cabra Marcado Para Morrer se tornou o típico filme das Diretas Já, o movimento que eclodiu em 1984 com o clamor por eleições diretas, que só viriam em 1989. Na época, foi julgado que o povo tinha desaprendido de votar, e por isso era perigoso que votasse no maior cargo executivo do país. O filme de Coutinho, por ter sido iniciado antes do golpe e finalizado no final da abertura, é um emblema do que o governo militar calou na população mais pobre e nos camponeses, e um clamor para que agora finalmente chegasse a hora da democracia.
O filme também inaugura o tipo de documentário cinematográfico que Coutinho dominará daí em diante, aquele que vai à procura da história e extrai das pessoas o melhor que elas podem dizer. O documentário como uma aventura no desconhecido. Como efeito disso, é muito fácil nos simpatizarmos com e até admirarmos as pessoas entrevistadas por ele. Coutinho é o entrevistador ideal, aquele que procura o melhor nos entrevistados. E este é o filme que comprovou que essa técnica serviria tão bem ao cinema quanto serviu à televisão, onde o cineasta dirigiu alguns episódios do Globo Repórter, nos anos 1970. Coutinho, aliás, considera a televisão sua maior escola no documentário, muito mais que o IDHEC, na França, onde estudou nos anos 1960.
A dignidade de Elizabeth
A maior personagem, e talvez não tinha como ser de outro jeito, é Elizabeth Teixeira, a viúva do líder camponês assassinado. Sua sede de falar, já passado o fantasma da ditadura, é tocante, e o modo como ela recebe toda a equipe e se posta diante da câmera é de uma dignidade que comove, mesmo quando ela xinga alguém ou elogia o presidente Figueiredo e sua abertura política. Igualmente tocante é a equipe encontrando os filhos que Elizabeth se viu obrigada a deixar pelo caminho, com medo de ser assassinada pelos militares. Assassinato de pobres, naquela época e também agora, é política do estado brasileiro.
Em 2013, Coutinho voltou a procurar Elizabeth e seus filhos para um extra do DVD de Cabra Marcado Para Morrer. O resultado é um longa com vida própria, de 65 minutos, intitulado A Família de Elizabeth Teixeira. Nos tempos atuais, em que a maioria dos documentários parece extra de algum DVD, este é acima da média, pois se relaciona com um longa muito mais caprichado na estrutura e nos permite ver como estão aqueles personagens que haviam nos tocado no filme de 1984.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Cabra Marcado para Morrer | 1984 | Brasil | 1h59 | Direção e roteiro: Eduardo Coutinho | Com Eduardo Coutinho, Tite de Lemos, Ferreira Gullar, Elizabete Altino Teixeira, João Virgilio Silva.
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