100 Dias de Cinema Brasileiro foi um projeto simples: em até 100 dias teria que ter visto 100 filmes brasileiros. Registrei todo o meu processo, como faço com todos os filmes, no meu Letterboxd e, ao fim do projeto, ranqueei a centena de filmes do melhor ao pior – refletindo meu gosto pessoal no dia em que a lista foi publicada, não a qualidade objetiva dos filmes (até porque isso não existe).
Vale ressaltar que a proposta do projeto foi documentar o processo de aprofundamento da minha relação com o cinema nacional, movimento amplamente impulsionado pelo meu orientador Luís Alberto Rocha Melo, que nas palavras de Arthur Autran: “é um dos mais talentosos autores sobre cinema brasileiro”, além de um dos principais pesquisadores do tema.
A seleção dos filmes que compunham a centena foi mais inconsistente do que o ideal, porém o próprio conceito de 100 Dias de Cinema Brasileiro previa certa aleatoriedade. Desde filmes canônicos e essenciais que sempre deixava pra ver depois, até filmes que descobri no processo de pesquisa, geralmente escolhia o que tinha vontade de ver na hora.
O único cuidado que tomei foi assistir filmes de todas as décadas a partir de 1920, permitindo certo sobrevoo sobre a história do cinema nacional, mas nunca propondo buscar um conhecimento integral: não se trata dos meus 100 filmes brasileiros preferidos, muito menos dos 100 filmes brasileiros mais essenciais. Indo dos ciclos regionais até romances lançados ano passado, acredito que a lista cumpre seu papel de documentar meu percurso, bem como motivar outras pessoas a fazer o mesmo.
Esses filmes foram acompanhados sempre que possível de bibliografia complementar, algumas delas essenciais para a trajetória. As que merecem citação textual são “Uma Situação Colonial”, de Paulo Emílio Sales Gomes, e “Cinema Brasileiro: propostas para uma História”, de Jean Claude Bernardet, além de inúmeros artigos sobre história e historiografia do cinema que realmente foram essenciais. Minhas aulas de Cinema Brasileiro na faculdade, ministradas por Melo e Alessandra Brum esclareceram grande parte do percurso, para que eu sozinho o pudesse percorrer.
Segue um pequeno comentário para cada um dos primeiros 25 filmes do meu ranking – para vê-lo completo, clique aqui.
Há 100 dias, e por mais 100 anos, viva o cinema brasileiro!
Ranking dos 25 filmes brasileiros:
25. Liliam, a Suja (1981) de Antonio Meliande
Vingança de uma secretária contra o poder patriarcal que a explora. Ao mesmo tempo, o filme é escrito e dirigido por homens, com momentos de estética gritantemente inserida no male gaze. É nessa ambivalência que o filme é construído, tendo seus melhores momentos nas cenas de sexo antes dos assasinatos, nos quais longe de momentos de prazer, a tensão é edificada: fugindo da corda bamba de imprecisão ideológica.
24. A Reencarnação do Sexo (1982) de Luiz Castellini
Filme incrível, e digo isso permitindo-me ser polissêmico: incrível por conta dos diálogos tão estilizados e absurdos, nada críveis; por conta da fotografia com momentos de extraordinário virtuosismo em composição; e por sua própria natureza excêntrica, singular. Uma obra prima do dito “pornoterror”, entretém e choca na mesma medida, sem se levar tão a sério.
23. Cuidado Madame (1970) de Júlio Bressane
Primeiro de alguns dos filmes de Bressane que surgirão neste top 25, provavelmente o cineasta mais explorado por este projeto. Já vemos aqui a crítica ao fetiche de filmar um assasinato – o tópico voltará em outro filme mais para frente no ranking. Além dos ingredientes clássicos de um filme da Belair, explorando a geografia tão marcante da Copacabana dos anos 70, Cuidado Madame explora o melhor da encenação tão particular do diretor, com Helena Ignez e Maria Gladys em seus auges.
22. Os Homens Que Eu Tive (1973) de Tereza Trautman
Libertarianismo puro. Um grito cinematográfico muito bem articulado contra a hipocrisia da família tradicional brasileira, por cúmulo contra os ideais da ditadura. Trautman é uma das tantas diretoras injustamente esquecidas pela história.
21. Nem Sansão Nem Dalila (1955) de Carlos Manga
Chanchada clássica da Atlântida Cinematográfica, dirigida por um de seus principais expoentes, Carlos Manga. Deliciosamente mergulhado em camadas finas e espessas de deboche, Oscarito sobra, e a paródia é – como em Carnaval Atlântida (1952), também de Manga- uma condição política.
20. Simão, o Caolho (1952) de Alberto Cavalcanti
Em 1949, Cavalcanti retornava ao Brasil quase que com rótulo de Messias, o homem que viria transformar o Brasil num polo industrial do cinema – ligado ao sonho Vera Cruz. A mentalidade de subdesenvolvido pesa bastante nesse cenário, visto que ele só era tratado dessa forma por ter “dado certo” no exterior. Simão, o Caolho é uma articulação pertinente e altamente irônica (tão recorrente no cinema nacional) da sociedade brasileira. Consegue ser engraçado e sofisticado, prezando um por um equilíbrio muito difícil de se alcançar num longa com proposta tão absurda.
19. O Homem do Sputnik (1959) de Carlos Manga
Chanchada que remete a Hitchcock sem perder o bom humor. Com uma construção narrativa bem elaborada, a trama é concluída com um dos melhores e mais absurdos plot twists que qualquer chanchada já produziu: se levar a sério… por quê?
18. Marcelo Zona Sul (1970) de Xavier de Oliveira
Coming of age brasileiro delicioso de se acompanhar, tão bom que na verdade por conta dele que decidi mergulhar mais profundamente na filmografia de Xavier de Oliveira. Um retrato muito interessante da pré-adolescência setentista – a partir da perspectiva de uma classe média branca, vale nota. Estreia de Stepan Nercessian no cinema com uma atuação que carrega o filme nas costas.
17. Absolutamente Certo (1957) de Anselmo Duarte
Anselmo Duarte é hoje lembrado quase que exclusivamente por ser o diretor de O Pagador de Promessas (1962). Uma pena, já que se trata de um dos personagens mais intrigantes do cinema nacional. Aqui, em sua estreia como diretor, a suposta chanchada (pouco engraçada, mas com excelentes números musicais) é um pouco desequilibrada em relação à tradição do “gênero” brasileiro, porém, talvez justamente por isso seja tão interessante. Em Absolutamente Certo – como diz Igor Nolasco – a direção consegue mediar o que há de melhor na fórmula clássica da chanchada em união ao refinamento técnico.
16. Meteorango Kid, Herói Intergaláctico (1969) de André Luiz Oliveira
André Luiz Oliveira faz, aos 21 anos, no auge da censura da ditadura militar, uma obra iconoclasta de resistência contra o governo opressor. O longa vai da paródia à melancolia, um verdadeiro terrorismo da forma – citando Jairo Ferreira. Divertido e revolucionário, gesto com gosto de juventude.
15. A Vida Provisória (1968) de Maurício Gomes Leite
Bom cinema político, que saudade de você! Nesses últimos anos, onde na melhor das intenções, estão sendo lançados alguns dos piores filmes políticos já feitos, vale a pena lembrar de longas como A Vida Provisória, obra basicamente esquecida pelo grande público.
14. Os Inconfidentes (1972) de Joaquim Pedro de Andrade
Se Joaquim Pedro de Andrade já exercia cinema de alegoria em seu famoso Macunaíma (1969), em seu longa metragem posterior, temos um discurso ainda mais sofisticado. Fugindo da recriação didática do lugar comum, Os Inconfidentes fala contra a ditadura militar ao tempo que relata – sem nunca se acoplar acriticamente ao discurso hegemônico – o mito de Tiradentes.
13. Mar de Rosas (1978) de Ana Carolina
Ana Carolina, em sua histeria sempre calculada, em seu “teatro de micro terrorismos”, citando meu professor Luiz Carlos Oliveira Jr. Filme que une o caos absoluto à elegância, com Betinha, uma das melhores personagens da década de 70.
12. Assalto ao Trem Pagador (1962) de Roberto Farias
Filme que marca a participação de Roberto Farias e Alinor Azevedo no ascendente Cinema Novo Brasileiro. Alex Viany o considera parte do Cinema Novo, quem sou eu para questionar. Assalto ao Trem Pagador aparece como um dos filmes que compõem a tradição de um cinema carioca, com sua afiada crítica social unida às belas imagens – que são a obra prima de Amleto Daissé. É um longa canônico, e faz jus ao rótulo.
11. Fragmentos da Vida (1929) de José Medina
Apesar da chamativa hipocrisia do discurso conservador – correndo o risco de soar anacrônico, esse é um dos melhores filmes já feitos no Brasil durante o período mudo. Além de Fragmentos da Vida, Exemplo Regenerador (1919) é o único filme de José Medina a sobreviver até os dias de hoje. Em ambos, conseguimos notar a influência de D.W. Griffith, uma figura de referência para o diretor. Assim como nos filmes de Griffith, ao se driblar o elemento reacionário que irradia da obra, encontramos um encenador de muita competência.
10. A Fêmea do Mar (1980) de Ody Fraga
Ody Fraga foi provavelmente a descoberta mais protagonizada pelo estímulo de Luís Alberto Rocha Melo. A Fêmea do Mar é um filme contextualizado em um ambiente idílico, com uma narrativa amparada em conceitos freudianos instrumentalizados por uma direção de distinção, encoberto por uma fachada de “pornochanchada barata”. O lençol de futilidade desaba e uma obra complexa, bem feita – que não deixa de ser divertida – se estende à quem com cuidado observa.
9. O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003) de Paulo Sacramento
Ficções e documentários sobre prisão e seus condenados são uma constante no cinema nacional. Mas em O Prisioneiro da Grade de Ferro temos algo de diferente. É diferente porque quando Paulo Sacramento entrega a câmera na mão dos prisioneiros, são eles os mediadores de sua própria perspectiva, são protagonistas de sua própria história. E pasmem, estamos falando de pessoas que habitavam o Carandiru pouco antes de ele ser demolido. E com um dos melhores finais documentais que já vi, se conclui o filme numa fala contraditória que toma um ar quase maléfico depois das duas horas que passamos juntos dos encarcerados. Soco no estômago e ódio de classe.
8. Auto de Resistência (2018) de Lula Carvalho e Natasha Neri
Auto de Resistência se assemelha a O Prisioneiro da Grade de Ferro ao tratar de um tópico importante a partir da melhor perspectiva possível: o distanciamento. Faz com graciosidade e leveza o que Maria Augusta Ramos costuma tentar fazer custosamente. Porque esse filme se permite aproximar, se apegar às verdadeiras vítimas, tomar um lado explícito a partir da sutileza e densidade de seus registros. A tensão é enorme, se constrói até um ápice de nervos que não são expelidos quando sobem os créditos. Se torna tão importante quanto difícil de assistir.
7. Compasso de Espera (1973) de Antunes Filho
Tudo é política, inclusive a escolha de um parceiro. Antunes Filho encena para a câmera o que montava no teatro. Compasso de Espera entra para a coleção de filmes excelentes de diretores de primeira viagem que nunca regressaram à direção de cinema. Junto a ele estão, por exemplo, Charles Laughton, ou, para citar um exemplo mitológico brasileiro, Mário Peixoto. Zózimo Bulbul é um ícone antirracista, e está brilhante neste que é um dos filmes que melhor soube lidar com o tema nos anos 70.
6. O Bravo Guerreiro (1968) de Gustavo Dahl
“O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl, é uma tragédia onde o Povo tem medo do Herói que pronuncia palavras arrancadas do fundo de um mundo arrebentado por conflitos políticos”. Faço da descrição de Glauber Rocha a minha. Tem uma mise en scène tão estilizada que se torna parcialmente inacessível, talvez deveras hermética, mas que comunica num nível tão profundo, que seria impossível encenar de outro jeito e ter o mesmo resultado qualitativo. Obra prima que precisa se tornar obrigatória ao cinéfilo que se preze.
5. Matou a Família e Foi ao Cinema (1969) de Júlio Bressane
Tenta chocar como qualquer bom filme do cinema marginal, e se diferencia em como choca, já que, como lembra Bruno Andrade, “Todo filme é o resultado estético de seu processo de produção”. Aqui vemos uma ideia de cinema tão particular, uma encenação e decupagem tão precisa e (permitam-me usar a palavra fetiche) autoral, que pro bem ou pro mal, é difícil esquecê-lo. Não é o longa de estreia de Bressane, mas é o longa de estreia da estética que é sua marca.
4. A Idade da Terra (1980) de Glauber Rocha
Este é possivelmente o filme que mais havia adiado para assistir. Tido por muitos não só como o melhor filme de Glauber, mas como o melhor filme brasileiro de todos os tempos, a ansiedade tomava conta quando dei play. Confesso que minhas expectativas estavam bem altas, e mesmo assim o longa não deixa a desejar. Em seu último filme, Glauber deixa sua profecia.
3. O Leão de Sete Cabeças (1970) de Glauber Rocha
Talvez o único filme de Glauber que, além de me seduzir intelectualmente, me divertiu. Gera entretenimento ao tempo que surpreende com sua complexidade discursiva. Obra Fanoniana, uma denúncia quase que lúdica, uma encenação que claramente surpreende os próprios figurantes nativos numa intercessão multicamada de crítica, ao tempo que te coloca um sorriso no rosto. Grito anticolonial, Estetyka do sonho em prática.
2. Memórias de um Estrangulador de Loiras (1975) de Júlio Bressane
A crítica ao fetiche de filmar um assasinato volta com tudo neste que é o primeiro filme de Bressane exilado em Londres. A melancolia é desenvolvida na encenação, consegue ser engraçada e triste num equilíbrio de criatividade e experimentalismo (odeio essa palavra). Filmes como esse não são comuns, são especiais.
1. O Anjo Nasceu (1969) de Júlio Bressane
Não só o melhor filme desse projeto, mas a melhor película de um dos melhores diretores vivos: Júlio Bressane. Desde o começo temos um longa sublime, mas é o plano final, na sua mistura de simplicidade e criatividade, que esse filme ganha espaço entre os melhores que já vi na vida. Me lembra um pouco o que Monte Hellman faz em A Vingança de um Pistoleiro (1966), mas se em Hellman temos abstração, em Bressane temos subdesenvolvimento.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.