Preston Sturges transita entre o drama profundo e a comédia pastelão em Contrastes Humanos (Sullivan’s Travels), mais um de seus filmes caprianos.
O protagonista John Sullivan (Joel McCrea), no entanto, não é tão íntegro quantos os heróis de Frank Capra. Sullivan, um diretor hollywoodiano de sucesso, decide que seu próximo filme terá preocupação social. Mas Sullivan nunca foi pobre, então, para retratar fielmente pessoas necessitadas, ele resolve se fingir de morador de rua por alguns dias. Até aí, parece uma atitude nobre. Porém, a pedido do estúdio, uma equipe o acompanhará, para que nada de ruim aconteça com ele. E, durante o experimento, ele recorrentemente volta ao conforto, pelas circunstâncias do momento ou por vontade própria. Na verdade, o idealismo ingênuo de Sullivan não lhe dá forças para resistir às provações. Até que, por ironia do destino, ele se vê em dificuldades reais.
A trama reserva várias surpresas, resultando num filme com muitas reviravoltas. Entre as pessoas que ele encontra nessa jornada, está a garota que tentou ser atriz em Hollywood mas não conseguiu. Essa personagem sem nome, vivida por Veronica Lake, acaba acompanhando Sullivan, inclusive em momentos difíceis.
As partes cômicas, especialidade de Sturges, invadem o absurdo para serem engraçadas. Na primeira cena, Sullivan fala com uma velocidade acelerada, metralhando palavras como na comédia slapstick. Aliás, com falas afiadas, pois Sturges era um dos roteiristas mais requisitados de Hollywood. O tipo de comédia varia. Quando Sullivan pega uma carona, é um menino de 11 anos que está no volante do carro, pisando fundo e obrigando o trailer da equipe do estúdio a entrar numa perseguição alucinada. Outros trechos de pastelão estão no filme, que às vezes se aproxima das produções da época do cinema silencioso.
Realismo dramático
Surpreendentemente, o momento mais dramático do filme é uma sequência muda. Sturges mostra Sullivan e sua companheira convivendo com os moradores de rua e dormindo, comendo e se banhando num abrigo. Antecipando o neorrealismo italiano, é um retrato sem filtro do lado ruim do capitalismo, que ficou pior após a crise da bolsa de 1929. O tom fica ainda mais sombrio quando o casal caminha ao lado de um rio, passando ao lado das pernas de uma pessoa dependurada em uma árvore – provavelmente um suicida. Os protagonistas nem notam, e por isso pesquisadores do cinema acreditam que Sturges inseriu esse detalhe dessa forma para que o estúdio ou os censores do Código Hays não notassem.
Na parte final, outra ousadia de Sturges. Durante aquela sequência entre os moradores de rua, um trecho mostra que um pastor não consegue animar essas pessoas sofridas. Mas, em momento posterior, enquanto Sullivan cumpre sua pena, ele e os outros presos visitam outro culto, liderado por um pastor negro (o anterior era branco). Ao exibir um filme de animação, os presos caem na gargalhada. Além da questão racial, Sturges declara seu amor à sétima arte. Não é a religião que dá o alívio para esses desesperançosos, é o cinema. Ademais, valoriza a comédia, pois Sullivan persegue que o que essas pessoas precisam não é de um drama com questões sociais.
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Ficha técnica:
Contrastes Humanos | Sullivan’s Travels | 1941 | 90 min | EUA | Direção e roteiro: Preston Sturges | Elenco: Joel McCrea, Veronica Lake, Robert Warwick, William Demarest, Franklin Pangborn, Porter Hall, Byron Foulger, Margaret Hayes, Robert Greig, Eric Blore.