Análise da linguagem cinematográfica do filme “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard, 1950).
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, analisaremos o filme “Crepúsculo dos Deuses”, dirigido pelo diretor austríaco Billy Wilder e produzido por Charles Brackett para a Paramount Pictures, sob o aspecto da utilização da linguagem cinematográfica. Entre tantas obras da história do cinema, esta foi selecionada por reunir recursos do estilo clássico e moderno, já influenciado pelo enciclopédico filme de Orson Welles, “Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1941), que empregava basicamente toda a gramática do cinema até então conhecida, inclusive com inovações, como o uso da profundidade de campo. “Crepúsculo dos Deuses” também possui rica variedade de artifícios para a comunicação através do cinema.
A partir da análise da sua linguagem cinematográfica, investigaremos sua utilização em prol da narrativa do filme, que se destaca pela ousadia temática – uma ácida crítica à própria indústria que produz o cinema, o que permite e até exige uma construção além dos padrões do cinema hollywoodiano. Billy Wilder, como veremos, consegue essa integração entre tema e imagens, afastando-se de qualquer crítica quanto a um viés maneirista, pois claramente trabalha os recursos funcionalmente.
Para melhor didática, dividimos a análise em subtópicos indicativos dos recursos empregados no filme que serão daí estudados.
ANÁLISE DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA
Plano sequência
Em “Crepúsculo dos Deuses”, encontramos vários momentos em que o plano sequência, que é a “apresentação da cena sem cortes, numa única tomada”[1], é utilizado, e cada um com uma finalidade narrativa própria, seja para intensificar o tom dramático, seja para estabelecer o espaço, ou para instigar a curiosidade do espectador. Analisaremos alguns desses usos.
O plano sequência nos créditos iniciais parte inusitadamente da guia de uma calçada e segue se movimentando para trás, por mais de um minuto e meio. A trilha sonora com instrumentos de corda em evidência é inquietante. Para o espectador, resta o mistério sobre o significado dessa sequência, compreendido somente no final, depois que sabemos que o protagonista morto é o narrador da estória, indicando que esse movimento de câmera é seu espírito nos guiando até o local do crime.
Como em “A Baía dos Anjos” (La Baie des Anges, 1963) de Jacques Demy, na orla de Nice, esse plano sequência proporciona uma outra percepção, dramática, com trilha harmoniosa em piano, como se a vida se afastasse da protagonista, perdida em seu vício em jogos.
Um plano sequência de quase três minutos sustenta o drama da revelação da depressão de Norma Desmond, cuidadosamente resguardada pelo mordomo Max, que retirou todas as fechaduras da casa e o gás do quarto dela, evita ter alguns tipos de remédios na casa, e ainda escreve falsas cartas de fãs para Norma, tudo para que ela não volte a tentar o suicídio. A sequência não é quebrada por cortes na edição, porque ela precisa parecer a mais natural possível – quanto mais real soar, mais dramática será.
O emprego do plano sequência no filme reforça a opção do diretor Billy Wilder por esse recurso, que se incorpora ao seu estilo, tanto que, mesmo depois que as lentes Panavision tinham eliminado as distorções causadas pela visão aproximada do processo anamórfico do Cinemascope e os realizadores americanos puderam retomar os planos únicos da decupagem clássica, Wilder foi um dos poucos diretores que seguiram persistindo no uso do plano sequência, conforme afirma David Bordwell[2].
Bordwell, ao analisar a encenação nos filmes do diretor Kenji Mizoguchi, apoia a preferência de Billy Wilder pelo plano sequência, que não quebra, com um corte, a intensidade conquistada por uma cena ininterrupta.
“Mizoguchi julgava o plano-sequência especialmente apropriado para rodar filmes sonoros. Se a montagem rápida combinava bem com o filme mudo, os dramas que filmava, principalmente no cinema sonoro, tinham mais afinidade com o plano-sequência. A montagem quebra ‘o peso ou a densidade psicológica que o público experimenta… Se você faz a montagem paralela, há invariavelmente alguns cortes (tomadas) que não devem ser incluídos. E é um grande equívoco racionalizar e dizer que eles são curtos. O poder hipnótico foi perdido.’ (citado por Kishi Matsuo. ‘A Talk with Mizoguchi’, In: Gerald O’Grady. Mizoguchi the master. p.11).
E intensificando o paradoxo: ‘O cinema com planos curtos é cinemático demais’. (citado por Shinoda Masahiro. “Far from Mizoguchi”. In: Leonard Schrader (org). The Masters of Japanese Film. p.11) Sua referência ao ‘poder hipnótico’ indica ainda outro objetivo alcançado pelo plano-sequência. Mizoguchi evidentemente queria que o espectador sentisse a mesma tensão elevada que perpassava a atmosfera do set no cinema sonoro. Comentou, já no final da carreira: ‘Durante a filmagem de uma cena, se um crescente afeto começa a se desenvolver, não posso cortá-lo sem pesar.
Ao contrário, tento intensificar e prolongar a cena até o limite do suportável’. (citado por Hazumi Tsumeo. ‘Trois interviews de Mizoguchi’. Cahiers du Cinéma, n.116. Fev.1961. p.17) É claro que essa atenção embevecida envolve sentir pelos personagens ou com eles, mas a composição das tomadas sugere que outras questões estão em jogo. A imagem convida o espectador a explorar cada brecha obscura do espaço, a perscrutar o menor movimento. O plano-sequência, afirmou Mizoguchi, ‘me permite afetar todas as possibilidades perceptuais dos espectadores ao máximo’. (BORDWELL, David. Figuras Traçadas na Luz. Campinas: Papirus, 2008. p.135)
Travelling
O travelling é o movimento da câmera, posicionado em uma grua ou em trilhos, que acompanha um personagem que se desloca em cena. No filme analisado, um exemplo é Joe Gillis saindo da garagem, onde escondeu seu carro, e caminhando até a mansão de Norma Desmond, em um travelling que o segue lateralmente, até ele subir as escadas e a câmera permitir um plano geral da casa, enorme mas quase abandonada, com o mato comprido e a piscina vazia. (Figura 01).
Som não diegético
Qualquer um que analise a gramática cinematográfica de “Crepúsculo dos Deuses” destacará a utilização do som não diegético, aquele que não foi produzido dentro do espaço da estória, porque, afinal, a narração em off permeia todo o roteiro, desde o travelling inicial na Sunset Boulevard que remete ao estilo do film noir e conduz o espectador a acreditar que se trata da voz de um detetive durão, que seria o protagonista do filme.
Mas há um indício de que não estamos diante de um cinema clássico, porque, depois do plano geral da mansão e da piscina com vários policiais e repórteres ao redor de uma piscina, há um plano aberto mais próximo que revela claramente um cadáver boiando na piscina, e então um plano absolutamente inesperado com a câmera em ponto de vista de dentro da piscina, em contra plongée, observa corpo do homem morto com a face para baixo, enquanto um nível atrás estão os fotógrafos dos jornais e os policiais.
Esse quadro afasta o filme do cinema clássico hollywoodiano e o espectador poderá depois relacionar essa sequência com a parte final do filme, quando perceberá algo ainda mais inusitado: o narrador é o próprio homem morto, como se fosse uma voz do além. Abre-se uma discussão teórica se a voz é diegética ou não-diegética. O voice over costuma ser não-diegético, mas se é narrada por um espírito, como uma das hipóteses possíveis em “Crepúsculo dos Deuses”, então essa narração seria diegética, a voz do espírito do protagonista assassinado que ainda ronda os locais dos acontecimentos relatados.
Marcel Martin, crítico francês, destaca o uso da narração nesse filme de Billy Wilder:
“A voz em off tem um papel considerável no cinema. Pode ser utilizada na terceira pessoa, quando o locutor não participa da ação (Les incomuns dans la Maison – Decoin, Soberba – Welles, além de todos os documentários), ou na primeira pessoa, quando o comentário é de um personagem da ação (O romance de um trapaceiro, Guitry, Le silence de la mer – Melville, Journal d’un curé de campagne – Bresson, Hiroshima, meu amor – Resnais, etc.), e o procedimento pode intervir nas situações mais inesperadas, em Pacto de sangue/Double Indemnity (Wilder), é o agente de seguros assassino que conta sua história e, em Crepúsculo dos deuses (também de Wilder), a história é contada pelo jornalista que a polícia encontra morto na piscina da antiga vedete.”[3]
Cabe aqui corrigir este trecho onde Martin cita a profissão do narrador, pois esse era um escritor, não um jornalista.
Outro som não diegético presente em “Crepúsculo dos Deuses”, a trilha sonora, merece também uma análise destacada. De autoria de Franz Waxman, responsável pela música em vários filmes de Alfred Hitchcock, como “Rebeca, A Mulher Inesquecível” (Rebecca, 1940) e “Suspeita” (Suspicion, 1941), a trilha remete aos temas dos filmes do mestre do suspense, notável na introdução e nos momentos onde a carga dramática é alta, como quando Max diz ao telefone para Joe Gillis que Norma Desmond cortou seus pulsos, ou quando o mesmo personagem confessa que foi o primeiro marido da ex-celebridade. Recorrer a esse recurso musical integra a convenção da linguagem do cinema clássico, ainda que atualmente se considere óbvio demais e evitado no cinema contemporâneo.
Som extra campo
A primeira aparição de Norma Desmond evoca uma assombração. Joe Gillis chega à velha mansão aparentemente abandonada e uma voz o chama, sem que se mostre de onde vem, uma inteligente construção do som extra campo, que se origina de fora do quadro, totalmente alinhado com a narrativa. É essencial para o filme que Norma Desmond surja com ar misterioso, acentuado pelo zoom da câmera em direção a ela, que está distante observando de uma das janelas do piso superior da casa. Isso já cria no espectador a percepção de que existe certo perigo rondando essa senhora de meia idade (figura 2). O mordomo lacônico com cara de mau, a grade da porta, a menção de um caixão, dão a impressão de que estamos diante de um filme de terror.
O segundo defunto do filme, à primeira vista parece um monstro, pois vemos apenas um braço peludo caindo do caixão. Depois, a câmera vagarosamente se aproxima para desvendar o rosto de um chimpanzé. Mesmo não sendo um monstro, causa estranheza um chimpanzé morto dentro de casa. Uma análise posterior sugere que Joe Gillis se tornou o substituto do chimpanzé para Norma Desmond, para suprir as suas necessidades afetivas, ou, em uma sugestão mais ousada, talvez até sexualmente.
Um recurso essencial para que essa sequência funcione é o som extra-campo, logo quando ouvimos a voz de Norma Desmond chamando a atenção de Joe Gillis, sem que reconheçamos de onde vem, porque sua origem não está ao alcance do que está no quadro. A mise-en-scéne sugere a possiblidade de aquela mansão estar abandonada e desabitada, portanto essa voz que não sabemos de onde vem carrega uma possibilidade sobrenatural.
A atriz Gloria Swanson, paradoxalmente uma estrela do cinema mudo, trabalha magnificamente sua voz, modulando-a conforme a cena exige. Se nessa primeira aparição, sua fala soa como uma pergunta ecoando ao longe, em outras situações de extra-campo ela evoca outras sensações. Deitada na cama, após tentar o suicídio, Norma Desmond chama Joe Gillis com uma voz infantilizada, expressando autopiedade e suplicando por compaixão. Já quando telefona para a personagem Betty Schaefer para sabotar o romance desta com Joe Gillis, ele ouve uma voz ameaçadora e raivosa através da porta do quarto da ex-vedete.
Ângulo da câmera
A câmera alta, ou high angle, representa a visão subjetiva de Norma Desmond olhando do alto da escada para Joe Gillis e Max, o mordomo, a fim de chamar o roteirista para contratá-lo (figura 3). Esse quadro, visualmente, representa a frase que acabou de proferir: “Eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos.”, ou seja, sua ilusão de uma grandeza que ficou no passado.
Na cena da festa de réveillon, a câmera em plongée coloca o casal dançando na pista, e percebemos que Joe Gillis não está nada confortável, esperando a chegada dos convidados para que ele possa abandonar a dança. A posição da câmera no alto focando os dois na pista traz a sensação da visão de deus, julgando a atitude de Joe Gillis (figura 4).
Joe Gillis se revolta com a situação em que ele se sente comprado por Norma Desmond e ele discute com ela na véspera do ano novo. A câmera à altura dos ombros de William Holden, olhando para baixo para Gloria Swanson que está no sofá representa a força que ele sente para resistir à pressão da milionária (figura 5).
Depois de beijar Betty, Joe volta para sua “prisão”, a casa de Norma, onde mora. A câmera está em plongée, como se Norma estivesse lá vigiando sua entrada, ou como se fosse um deus julgando-o por ter beijado Betty e voltado para a casa da mulher que o acolheu e que ele explora. Há muitas sombras nessa cena e planos inclinados do film noir (figura 6).
Depois que Joe Gillis finge desprezar o amor que sente por Betty Schaelfer, quando ela o visita na mansão de Norma Desmond, após o rapaz se despedir da moça, a câmera em contre plongée revela que Norma está na varanda interna da casa observando a cena, um enquadramento magnífico que coloca Norma dentro de um dos quadrados formados pela grade da entrada da casa, e Joe fecha a porta para voltar a sua “prisão” (figura 7).
Vale destacar, ainda, a câmera em high angle na sequência em que Joe Gillis beija Norma Desmond após sua tentativa de suicídio, que enquadra William Holden de costas, por cima de seu ombro. Não se trata, portanto, de uma câmera subjetiva, mas sim a visão do narrador, que é o próprio Joe Gillis contando sua história em flashback, permitindo uma posição de julgamento sobre o personagem.
Profundidade de campo
Segundo Marcel Martin, “(…) uma composição em profundidade de campo consiste em distribuir os personagens (e os objetos) em vários planos e fazê-los representar, tanto quanto possível, de acordo com uma dominante espacial longitudinal (o eixo óptico da câmera). A profundidade de campo é tanto maior quanto mais afastados os planos de fundo estiverem do primeiro plano e quanto mais próximo da objetiva este se encontrar.”[4]
Sobre a profundidade de campo, analisaremos essa composição do primeiro plano muito próximo em contraste com a profundidade de campo. Joe Gillis se revolta quando descobre que seus pertences foram trazidos para a edícula onde passou a primeira noite na mansão. Ao se dirigir à casa principal, temos um quadro que coloca somente as mãos com luvas brancas do mordomo em primeiríssimo plano, tocando piano, enquanto Joe Gillis surge bem ao fundo, esbravejando com ele.
Sua figura proporcionalmente diminuta em relação a Max demonstra a posição de subordinação a qual ele atualmente se encontra, endividado e sem ter onde conseguir outro emprego, não restando alternativa senão aceitar o trabalho de revisar o roteiro de Norma Desmond, sujeitando-se à condição de morar na propriedade da ex-estrela (figura 8).
A outra cena crucial do filme onde a profundidade de campo é aplicada é aquela onde Joe Gillis sobe ao quarto de Norma depois que ela tentou se suicidar, consequência direta do desprezo que ele demonstrou ao amor dela. Em primeiro plano, em quadro impressionante, estão os braços enfaixados de Norma, cuja cabeça está fora do quadro, e ao fundo, pela porta, a profundidade de campo permite que vejamos Joe Gillis entrando no quarto, até se aproximar da beira da cama (figura 9). Não vemos Norma, mas sua voz fora do quadro é frágil e delicada, como de uma criança, evocando pena. Joe Gillis olha para Norma na cama, o que ele vê o espectador pode acompanhar no espelho ao lado de Joe, mas desfocada.
Mais um uso da profundidade de campo merece menção. Norma com cara de vilã, dentes cerrados, olhos arregalados, e ainda curativos pelo rosto. A tomada com profundidade de campo permite-nos ver Joe surgindo da porta de seu quarto (figura 10), como na cena em que ela está na piscina e se dirige ao mordomo Max, que é a figura ao fundo (figura 11).
Fotografia
O fato de Billy Wilder ser originário da escola de cinema alemã influencia a fotografia com características expressionistas de “Crepúsculo dos Deuses”, coerente com o viés pessimista de seu roteiro. Esse longa metragem de Wilder muitas vezes é classificado com film noir, apesar de essencialmente não pertencer a esta categoria, apesar de que esta é uma discussão que não cabe neste artigo. Passemos, então, à análise da fotografia do filme.
Wilder trabalha o chiaroscuro, a representação pictórica em termos de luz e sombra, de forma notável na sequência em que Norma Desmond e Joe Gillis assistem a um antigo filme dela, em uma sessão de cinema privada em sua própria casa. Em certo momento, ela se levanta e a luz do projetor em seu rosto funciona como se fossem os holofetes dos estúdios, reforçando a ideia de que ela ainda se sente como uma celebridade (figura 12).
O holofote real também tem seu papel no filme. No estúdio 18 da Paramount, acontece o momento mais emocionante do filme. Norma Desmond é bem recebida por Cecil B. De Mille, interpretado por ele mesmo (figura 13). O técnico da iluminação a reconhece e coloca o holofote em cima dela, desta vez, luzes reais. Outros antigos colegas de profissão se aproximam dela para cumprimenta-la e ela sente o quanto o estúdio faz falta para ela.
Na cena mais escura do filme, a fotografia possui papel essencial. Max aguarda nas sombras por Joe voltando de sua escapada (figura 14). O uso da fotografia é diferenciado, mais escura e realçando as sombras, reforçando o estilo film noir influenciado pelo expressionismo alemão, sequência em low key, tom mais escuros que o resto do filme, porque Max faz a chocante revelação que ele foi o primeiro marido de Norma e que foi um grande diretor, música não diegética orquestrada dramática.
Na sequência seguinte, vemos Norma em seu quarto, fumando e caminhando em direção à porta, onde está a câmera, e ela parece uma figura sinistra, depois da revelação de Max. Essa contraposição dessa sequência depois da outra com a revelação surpreendente de Max representa perfeitamente o efeito Kuleshov. Se a cena anterior não fosse esta da revelação, o impacto da sequência com Norma seria outro.
Cenário
Um uso inteligente do cenário para fins narrativos emprega uma coluna da mansão de Norma Desmond para separar e proteger Joe Gillis dos agentes na cena em que eles querem tomar seu carro por falta de pagamento. Analisemos outros momentos do filme em que o cenário é um recurso da gramática cinematográfica.
Uma panorâmica para a direita repousa em um enquadramento onde Joe Gillis e Betty Shaefer estão em diferentes molduras (figura 15), ele pode ser visto através da porta e ela da janela do seu escritório, escrevendo um roteiro. Os dois estão em molduras separadas porque eles ainda não começaram nenhum relacionamento amoroso ainda.
No início da sequência romântica do filme, Joe e Betty estão novamente no estúdio, mas agora o enquadramento os coloca juntos na porta, dividindo a mesma moldura (figura 16). Ao invés do plano/contraplano o quadro mostra os dois na tela juntos, em um plano sequência de dois minutos até os dois se beijarem.
Close-up
Um dos momentos cruciais do filme emprega um close-up extremo enchendo a tela com o perfil de Joe Gillis virado para o vendedor de roupas, ambos muito próximos. O vendedor insinua sussurrando que Joe deve aproveitar-se de Norma Desmond e comprar as roupas mais caras da loja. Essa tomada representa o ponto de virada no caráter do personagem, que a princípio aceitara a oferta de trabalho da ex-atriz para seu sustento, mas que agora percebe que pode extrair mais dinheiro dela usando a afeição pessoal que ela sente por ele.
Essa sequência se encerra com Joe Gillis pegando aquele casaco mais caro da loja, o que deixa claro ao espectador que ele aceitou a sugestão malandra do vendedor de roupas.
Na cena da dança, no réveillon na mansão, Norma Desmond está tão atraída por Joe Gillis que ela não hesita em jogar no chão a tiara com véu que evitava que eles dançassem mais colados um do outro. A câmera se fecha no close do detalhe da tiara no chão e vemos os sapatos de algum homem se aproximando para recolhê-la. A câmera se afasta um pouco e se coloca em posição da linha do olho, para revelar que os sapatos são de Max, sempre solícito.
Em outras sequências em que o close-up dos detalhes é utilizado como recurso da linguagem do cinema (figura 17), a câmera se aproxima da cigarreira de ouro de Joe Gillis, onde está escrita uma declaração de amor de Norma para ele; posteriormente na estória, vemos o close no título do roteiro que Joe e Betty estão escrevendo juntos, “Untitled Love Story”, de Joseph C. Gillis e Betty Schaefer (figura 18).
Sobre o icônico close-up que encerra o filme, comenta o crítico Marcel Martin: “(…) embora se admita que as sequências (e os próprios filmes) devam iniciar e terminar com planos gerais, é cada vez maior o número de exceções (…). Os primeiros planos terminais buscam manter o espectador na plenitude do envolvimento dramático, mesmo depois de terminada a ‘história’: são exemplos disso o primeiro plano de Gino após a morte trágica de sua amada (Obsessão, Visconti) ou o rosto da estrela enlouquecida ao ver desabarem seus sonhos (Crepúsculo dos Deuses, Wilder).”[5]
Elementos do cenário
Analisaremos aqui como a linguagem cinematográfica é trabalhada em “Crepúsculo dos Deuses” com o uso dos elementos em cena, desde aqueles naturais até os objetos, os chamados props em inglês.
Começamos por um elemento natural. Nos filmes de Akira Kurosawa, as forças da natureza servem como um paralelo da situação narrada no filme, como em “Rashomon” (1950), quando a chuva só dá uma trégua no momento em que o personagem do lenhador pratica uma boa ação, significando uma faísca de esperança na humanidade, a primeira nesta estória essencialmente pessimista. Billy Wilder também recorre à chuva para evidenciar o comportamento perverso de um dos personagens.
Depois que Joe Gillis recebe o conselho do vendedor de roupas para se aproveitar da generosidade da ex-estrela milionária, entendemos que ele passará a agir seguindo essa sugestão imprópria, porque a próxima sequência acontece debaixo de uma chuva torrencial. A chuva forte se repetirá na também dramática cena em que Joe Gillis abandona a festa do réveillon na mansão de Norma Desmond para procurar outro lugar para passar o réveillon depois de brigar com ela, novamente pontuando a falta de sensibilidade do rapaz.
Os elementos físicos do cenário também possuem função na linguagem do cinema, como o uso inteligente dos objetos em cena em “Crepúsculo dos Deuses”. O estranho suporte de cigarro que Norma Desmond usa para fumar, na cena em que contrata os serviços do roteirista Joe Gillis e, em momento posterior, na sequência após dançar com ele, permite uma interpretação ousada, como que um símbolo fálico do membro do rapaz aprisionado pela senhora (figura 19) – Norma ainda leva o cigarro à boca na cena. Ao manipular sua presa masculina através de seu poder financeiro, Norma Desmond se aproxima da femme fatale do film noir.
Outro objeto, o espelho, muito empregado no cinema com função metafórica, em “Crepúsculo dos Deuses” evoca a loucura que domina Norma Desmond. Quando Joe Gillis declara que não quer seu amor, ela o esbofeteia e foge para o seu quarto no andar superior. No trajeto, um belo enquadramento coloca Norma Desmond dentro de uma moldura, que é o espelho no hall (figura 20).
Norma se vê no espelho, novamente simbolizando que está cada vez mais perto da loucura. O olhar dela é aterrorizante. Com os curativos, e sua expressão facial, parece um monstro. O espelho também revela o caráter dúbio dela, que antes provocou pena, mas que agora se inclina mais a provocar ódio (figura 21). Em outra sequência, Norma está na penteadeira, com um espelho circular na mão que mostra o rosto dela, já totalmente enlouquecida (figura 22). O pequeno espelho de mão reflete a luz no rosto dela – não há mais a dualidade, ela já atravessou a linha que divide os sãos dos insanos, o reflexo está no rosto dela (figura 23).
Ainda sobre os objetos, Joe Gillis quer liberdade, quer atravessar as grades da porta da mansão para curtir uma festa de réveillon com gente da idade dele, mas a corrente do seu fraque se engancha na maçaneta (figura 24), como se fosse sua consciência boa tentando evitar que ele saia e previna as consequências terríveis que acontecerão.
Além dos elementos específicos, a mise-en-scéne, o conjunto de tudo que está em cena, também é utilizado na gramática do filme. Contrastando com a festa sem convidados no enorme salão da mansão de Norma Desmond, a festa de réveillon na casa de Artie, amigo de Joe, está transbordando de gente feliz e barulhenta, tanto que Joe Gillis e Betty Shaefer só conseguem conversar dentro do banheiro.
A aparição de Betty Shaefer na festa é engenhosa. Enquanto Joe e Artie conversam em frente à mesa de bebidas, rodeados por vários convidados, o espectador não nota que a moça à direita de Artie é Betty, de costas (figura 25). Essa sequência é construída para evidenciar o que o jovem Joe Gillis sente falta quando está enclausurado na mansão solitária de Norma Desmond.
Depois da tentativa de suicídio. Joe sente compaixão por ela e se senta na cama, para desejar um feliz ano novo, e Norma o puxa para perto e os dois se beijam, pela primeira vez. Um fade out encerra a cena com uma elipse que pode indicar que os dois fizeram sexo. O que é confirmado na sequência seguinte, na piscina, quando Norma está deslumbrante, glamourosa em primeiro plano, deixando Max à distância no fundo do quadro desfocado, mostrando o quanto eles estão agora distantes, devido ao relacionamento que agora está mais íntimo com Joe Gillis, que surge da piscina somente com calção de banho, à vontade.
A piscina e o jardim, bem cuidados agora, em oposição ao estado em que estavam na chegada de Joe ao local no início do filme, mostram a mudança no estado de espírito de Norma. Joe emergindo da piscina, com as águas pingando, simboliza o sexo que finalmente acontece entre os dois.
O cineasta François Truffaut, durante as entrevistas que fez com o diretor Alfred Hitchcock, cita Billy Wilder entre aqueles que criticam a sociedade americana: “(…) parece-me que os cineastas europeus proporcionam ao cinema americano alguma coisa que os diretores hollywoodianos não poderiam dar, um certo olhar bastante crítico sobre a América, e isso muitas vezes torna o seu trabalho duplamente interessante. São detalhes que raramente serão encontrados em Howard Hawks e Leo MacCarey, mas frequentemente em Lubistch, Billy Wilder, Fritz Lang e também nos seus (de Hitchcock) filmes, observações críticas sobre a vida americana.”[6]
Crítica social semelhante à cena final de Cidadão Kane encontramos em “Crepúsculo dos Deuses”. Joe mostra a sala de Norma, com teto de Portugal, um monte de quinquilharias, fotos dela mesma, Joe menciona a pista de boliche no porão, os 18 ternos que ela comprou, enfim, o materialismo tentando compensar algo do passado que foi perdido. Em Cidadão Kane, a infância simbolizada pelo trenó Rosebud, aqui os dias de glória de Norma Desmond. O diálogo reforça essa crítica, quando muitas pessoas se aglomeram na entrada da casa de Norma Desmond depois do crime, e Joe, como narrador, diz em voice over: “parecia a abertura de um novo supermercado em Los Angeles”. Numa tentativa de redenção, Joe sacrifica seu amor por Betty porque não se sente digno do amor de uma pessoa tão boa como ela, lembrando o sacrifício de Humprhey Bogart em “Casablanca” (Casablanca, 1942).
O crítico francês Marcel Martin comenta sobre o uso da escada no filme, e analisa sua aplicação em “Crepúsculo dos Deuses” quando em sentido descendente: “(…) transmite à cena um sentido trágico, exemplificado pelo célebre fuzilamento de Odessa em O Encouraçado Potenkim (Eisenstein) ou pela cena final de O Crepúsculo dos Deuses (Wilder), quando Norma Desmond, alucinada e acreditando-se de volta aos tempos de sua glória no cima mudo, desce a grande escadaria de sua casa sob as luzes dos refletores, frente às câmeras dos jornais de atualidades.”[7]
Os figurantes são importantes elementos da mise-en-scéne e isso fica evidente em uma composição ousada na cena final onde Norma Desmond desce as escadas. Ela parece ser a única que se move, enquanto os policiais e repórteres permanecem inquietos nos cantos, dando passagem para ela pelo centro, provocando a impressão de que ela realmente pertence a outro mundo, o mundo dos loucos. A solução é tão engenhosa que ecoa no quase experimental “O Ano Passado em Marienbad” (L’année dernière à Marienbad, 1961), de Alain Resnais.
Montagem
Em relação à montagem em “Crepúsculo dos Deuses”, destacamos a colagem com várias tomadas de Norma passando por vários tratamentos para ficar bonita para sua volta ao cinema, recurso muito usado para mostrar a passagem do tempo e os esforços realizados, visto em sequências de treinamento – por exemplo em “Rocky: Um Lutador” (Rocky, 1976) – ou de montagem de algum equipamento.
Mas “Crepúsculo dos Deuses” também utiliza a montagem clássica, quando o roteiro assim a demanda. Antes de declararem o amor um ao outro, Joe Gillis e Betty Schaefer passeiam pelas ruas dos cenários do estúdio da Paramount, até pararem em uma praça para conversarem. Para essa sequência, que contém uma certa dose emocional, mas ainda contida porque os sentimentos dos personagens ainda permanecem represados, Wilder escolhe a montagem clássica. A câmera faz um movimento em pan acompanhando o movimento dos dois caminhando pela rua do estúdio à noite (figura 26). Uma panorâmica em plano geral, então, situa onde eles estão (figura 27). O diálogo na praça é filmado usando o plano e contraplano (figuras 28 e 29).
Sobre essa montagem clássica do diálogo, David Bordwell explica: “A estrutura campo/contracampo apresenta o diálogo de forma intensa, com a mudança da posição da câmera frisando cada personagem que fala e realçando sua expressão ou a falta dela, importante fator da vida em sociedade. Até o corte para um plano mais fechado mimetiza e também estiliza nossa visão de objetos a distância.”[8]
Câmera Participativa
A cena final antológica de “Crepúsculo dos Deuses” usa a câmera participativa, quando Norma olha diretamente para a câmera. Ela se dirige aos espectadores do cinema, diretamente, chamando-os de “essas pessoas maravilhosas aí no escuro”, e encara a tela enquanto se aproxima, até praticamente entrar nela, sob névoas que simbolizam seu estado mental. Billy Wilder usou nessa cena esses “(…) pequenos truques, porque os sentidos dela estão confusos. Ela não sabe onde está. Então, para realmente fixar que ela pensa que está num estúdio, está a fala: ‘Estou pronta para meu close-up, Sr. DeMille’, e ela caminha para o close-up.”[9]
Metalinguagem
Notamos a metalinguagem, ou especificamente a metacinema, no filme, em intensidade acentuada, porque, além de sua estória versar sobre o mundo do cinema, traz vários astros interpretando eles mesmos (Cecil B. DeMille, Hedda Hopper, Buster Keaton e outros) e ainda utiliza como locação os estúdios reais da Paramount. Além disso, a protagonista Gloria Swanson se assemelhava muito à personagem, pois tinha sido uma estrela do tempo do cinema mudo e na época de “Crepúsculo dos Deuses” estava com a mesma idade e esquecida.
Ela havia feito ainda um filme com Erich von Stroheim dirigindo, chamado “Minha Rainha” (Queen Kelly, 1929), que é o filme usado na cena em que Joe e Norma assistem um filme na casa dela. Stroheim, apesar de não estar em má situação como seu personagem Max, guarda a mesma experiência profissional deste, a de diretor de cinema.
A metalinguagem permite também que se acentue o distanciamento entre os mundos de Norma Desmond e Joe Gillis, através do estilo de atuação dos dois intérpretes. Gloria Swanson exagera em suas expressões faciais e corporais, reflexo de como os atores trabalhavam na época do cinema mudo, contrapondo-se à atuação mais naturalista de William Holden. Essa diferença seria ainda mais ressaltada se o ator previamente escolhido para o papel de Joe Gillis, Montgomery Clift, estivesse no filme, por ser um seguidor do “Método” do Actors Studio, que teria resultado em uma atuação mais visceral, originada de seus sentimentos íntimos.
CONCLUSÃO
Analisamos aqui alguns dos recursos da gramática cinematográfica aplicados pelo diretor Billy Wilder em “Crepúsculo dos Deuses”. Notamos que, ainda que o filme objeto deste estudo se insira no cinema hollywoodiano clássico, em vários momentos a obra recorre a uma linguagem inovadora e até ousada, com destaque para a câmera participativa em sua última cena.
Identificamos o estilo clássico no uso dos close-ups em objetos, no plano/contraplano, na trilha sonora não diegética do filme que, ainda, se deixa influenciar pelo expressionismo alemão, o que não surpreende pela origem do diretor Wilder. A narração em voice over, o jogo de luzes e sombras, e uma provável femme fatale, marcam a visão cruel do mundo como se estivéssemos diante de um film noir, apesar de “Crepúsculo dos Deuses” não ser propriamente classificado nesse gênero.
Antes de finalizarmos o presente estudo, recorremos à teoria de David Bordwell para compreendermos como se produz a hermenêutica desses recursos da linguagem do cinema que os tornam universalmente compreensíveis a todas as audiências.
“Isto é ponto pacífico: os filmes também apresentam o que chamamos de convenções. Basta um corte para que a câmera mude de posição instantaneamente, algo que não podemos fazer na vida real. Para relembrar um exemplo (…), em cenas de filmes, as pessoas que conversam, olham-se sem piscar. E essas técnicas não são culturais? Sim, mas de uma maneira diferente das convenções arbitrárias que regem o léxico e a sintaxe de uma língua. Muitas convenções do cinema servem para estilizar, ressaltar e purificar experiências visuais cotidianas ou interações sociais. Em todas as culturas, as pessoas normalmente conversam face a face. Quando os atores de um filme se olham intensamente, acentuam, exageradamente os sinais cotidianos de atenção e interesse mútuos entre os que dialogam (…)
Um grande número de convenções traz em seu bojo experiências não-fílmicas do mundo visível e da ação social que nele se desenrola. É possível que seja a razão principal de ser tão fácil aprendê-las. Rapidamente, reconhecemos a situação representada (duas pessoas falando) e, desse modo, apreendemos a convenção da representação (para deixar a que fala ou a que escuta mais visível, o cinema corta de uma para outra). Porque muitas das características da realidade perceptual e social são recorrentes nas culturas, o público internacional capta as convenções com facilidade.
Essa consideração aponta na direção deum construtivismo moderado: as convenções cinematográficas são construídas com base nas regularidades sociais e perceptuais encontradas em muitas culturas. Tais regularidades constituem o que poderíamos chamar de universais contingentes.” (BORDWELL, David. Figuras Traçadas na Luz: A Encenação no Cinema. Campinas: 2008. Papirus. P.332)
Diante da análise detalhada deste estudo sobre o filme “Crepúsculo dos Deuses”, identificamos como as convenções da linguagem cinematográfica podem ser ricamente trabalhadas para que o espectador compreenda as mensagens comunicadas sem a necessidade de que isso lhe seja transmitido verbalmente ou por escrito. Ou seja, é a arte do cinema em sua plenitude.
BIBLIOGRAFIA:
[1] BAZIN, André. O que é o cinema?. Ubu Editora, 2018.
[2] BORDWELL, David. Figuras Traçadas na Luz. Campinas: Papirus, 2008. p.199
[3] MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: 2007, Brasiliense. p. 186
[4] MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2007. p. 165
[5] MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: 2007, Brasiliense. p. 140-141
[6] TRUFFAUT, François. Hitchtock/Truffaut. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.49
[7] MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: 2007, Brasiliense. p.67
[8] BORDWELL, David. Figuras Traçadas na Luz: A Encenação no Cinema. Campinas: 2008. Papirus. P.332
[9] CROWE, Cameron. “Conversations with Wilder”. New York: Alfred A. Knopf, 1999. p. 151
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Ficha técnica
Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950) EUA, 110 min. Dir: Billy Wilder. Rot: Charles Brackett & Billy Wilder & D. M. Marshaman Jr. Elenco: William Holden, Gloria Swanson, Erich von Stroheim, Nancy Olson, Fred Clark, Lloyd Gough, Jack Webb, Cecil B. DeMille, Hedda Hopper, Buster Keaton, Anna Q. Nilsson, H. B. Warner.