Uma coisa devo dizer: ponto altamente positivo para a pontualidade. As sessões são sempre apresentadas pelas equipes dos filmes. Logo, começar no horário é fundamental. Até aqui, tudo ótimo nesse quesito. Hoje, infelizmente, resolveram ligar o ar quente e, para mim, a sala de cinema ficou um discreto forninho. Como gosto do frio, obviamente detestei a novidade. É um tal de tira roupa, põe roupa que não é mole, fora que o ar quente artificial machuca a garganta da maioria dos presentes.
Dia 3
Os oito curtas gaúchos de hoje mantiveram o nível mediano de ontem, com talvez até menos destaques: Chibo, de Gabriela Poester e Henrique Lahude, foi o grande premiado pelo júri oficial, enquanto o júri da crítica preferiu Pastrana, de Melissa Brogni e Gabriel Motta, que passou no sábado, segundo dia do festival (e primeiro de competitivas). Nenhum deles é grande coisa, mas o júri oficial do festival ao menos premiou um dos filmes mais interessantes. Os outros destaques de hoje foram Noz Pecã, de Aline Gutierrez; e Posso Contar nos Dedos, de Victoria Kaminski.
Na competição de longas brasileiros, o segundo concorrente foi o fraco Estômago 2: O Poderoso Chef, de Marcos Jorge, que consegue ser pior que o primeiro, que por sua vez foi um daqueles delírios dos tempos de bonança do cinema brasileiro. A preocupação em repetir a estrutura se mostrou equivocada mais uma vez. Enquanto estamos na prisão, vá lá, o filme até tem seus momentos. Quando mostra o passado e a formação do chefão, sai de baixo, é um momento pior que o outro. Nem as citações do filme do Coppola salvam. Ou melhor, elas até pioram, pois são mal-feitas, principalmente a da porta que se fecha como no final de O Poderoso Chefão (1972). Eu já esperava pouco do filme, veio menos do que eu esperava.
Dia 4
Mais conhecido como segunda-feira, 12 de agosto, é o dia do começo da competitiva de longas gaúchos e da exibição do terceiro concorrente da competição de longas brasileiros. Além disso, tivemos a primeira sessão da mostra de curtas brasileiros (com filmes meio iguais, sem nenhum destaque, mas com alguma força em todos eles).
Serei direto: este quarto dia marcou o começo do festival. Foi quando vimos grande cinema pela primeira vez. Não só porque o filme gaúcho exibido é belíssimo, como também pela excelência do longa da competição principal, muito acima dos competidores das noites passadas.
Comecemos pela sessão vespertina. Cristiane Oliveira consegue superar o simpático A Primeira Morte de Joana (2019) com Até que a Música Pare, que flagra um casal de idosos tentando superar a perda do filho e as maracutaias do homem, ex-proprietário de um supermercado. Eles vivem na serra gaúcha, numa comunidade que ainda fala o dialeto de imigrantes do norte da Itália, uma língua que nos remete à obra-prima A Árvore dos Tamancos (1978), de Ermanno Olmi.
Em um dos momentos mais belos do filme, a filha volta da Itália com seu marido italiano, e ele ensina à sogra sobre o budismo, tentando entender o dialeto dela enquanto sua esposa explica as diferenças entre essa língua e o italiano oficial. O momento me lembrou do cinema de outro Oliveira, o português Manoel, principalmente dos filmes Viagem ao Princípio do Mundo (1997) e Um Filme Falado (2003). A comparação com Olmi e Manoel de Oliveira pode ser prejudicial, mas o filme de Cristiane Oliveira se segura muito bem, revelando um estilo particular. Afinal, é quase impossível, sempre foi, um filme não lembrar de algum outro. Até que a Música Pare é um dos melhores exemplos da evolução do cinema gaúcho.
À noite, foi exibido aquele que será muito difícil de superar, embora seja difícil também de ser o grande premiado: Oeste Outra Vez, de Érico Rassi. Trata-se de um faroeste na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, onde dois homens que amam a mesma mulher tentam se matar apelando para terceiros.
Devo avisar que Rassi é meu amigo há alguns anos, mas tenho certeza de que isto não influenciou meu julgamento. Afinal, amigos já me viraram a cara porque critiquei filmes deles enquanto gente que fala mal de mim sem motivo algum já teve trabalhos elogiados por mim. O que me importa, enquanto escrevo, é o cinema, e só. As amizades, obviamente, são valiosas, e as prezo muito. Mas se eu mentisse, não seria um verdadeiro amigo. No caso desse cineasta, sempre notei que temos gostos muito parecidos em cinema. Natural que sua direção me agradasse em cheio. Tão natural que o meu maior medo era de me decepcionar, o que felizmente não aconteceu. Terminada a digressão, voltemos ao belíssimo Oeste Outra Vez.
Como em Comeback, primeiro longa do diretor, percebemos ecos de Clint Eastwood e Kenji Mizoguchi, embora o trabalho com o zoom remeta a Sérgio Leone. Mas Rassi realiza um filme único, com um tempo pouco comum no cinema brasileiro contemporâneo, que não tem medo de mergulhar seus atores no escuro (como Eastwood adora fazer) e que pensa na imagem com cuidado. Brilhante a sequência de perseguição dos homens num cavalo por um outro homem numa camionete. Igualmente brilhante o encontro do personagem de Ângelo Antônio, aliás, Totó, com o matador contratado pelo personagem de Babu Santana, aliás, Durval.
O toque de humor é muito bem inserido, principalmente porque o capanga contratado por Totó erra todos os tiros que dá em Durval e depois erra novamente vários tiros no confronto da cabana. Um matador de araque, podemos dizer, mas ainda assim um matador em terra de matadores.
Também são ótimas, no sentido do humor, as cenas em que Totó e Durval se encontram. E a digressão da cena em que um homem se entrega tolamente por acaso e perde sua vida por uma escolha totalmente errada, atrasando a missão do matador contratado para outro serviço.
Muito bom ver um filme com esse cuidado na mise en scène, que não pensa em iluminar toda a tela em todos os momentos, como os longas exibidos anteriormente na competição.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.