A história de Duas Vidas (Love Affair, 1939) se tornou uma das mais conhecidas do drama romântico no cinema. Um homem e uma mulher se conhecem numa viagem de navio e se apaixonam. Como estão comprometidos com outros parceiros, combinam de se encontrar dali a seis meses, para confirmar se a paixão é tão forte quanto pensam. Durante esse tempo, não se comunicam, mas cada um faz sua parte em romper seus relacionamentos anteriores. Quando chega o dia do encontro, ela sofre um acidente perto do local combinado. Então, para não causar sofrimento ao homem que ela ama, ela prefere se sacrificar e nunca contar o que aconteceu.
Esse enredo possui um poder de engajamento tão forte que o próprio diretor Leo McCarey o refilmou. Isso aconteceu em Tarde Demais para Esquecer (An Affair to Remember, 1957), com Cary Grant e Deborah Kerr nos papéis principais. E, posteriormente, houve outra refilmagem, Segredos do Coração (Love Affair, 1994), de Glenn Gordon Caron, estrelada por Warren Beatty e Annette Bening. Neste filme de 1939, Irene Dunne e Charles Boyer interpretam o par romântico. Dunne vive Terry McKay, uma ex-cantora de boate que agora vive confortavelmente porque namora um homem rico. E Boyer assume o papel de Michel Marnay, um mulherengo famoso que está noivo de uma herdeira rica.
Não é apenas um romance
Um dos encantos de Duas Vidas repousa na inesperada quebra do crescente clima romântico entre esses dois protagonistas charmosos. A poucos instantes do esperado encontro, o filme se torna um drama, não só pelo acidente trágico como também pela desilusão de Michel quando pensa que Terry desistiu dele. E, depois, pelo auto sacrifício dela em esconder o que aconteceu porque não quer forçá-lo a se casar com uma mulher paralítica.
Porém, o filme possui seus momentos fracos. Principalmente, os dois números musicais cantados por Irene Dunne. O primeiro na casa da avó de Michel na Ilha da Madeira, enquanto a senhora toca piano. E o segundo num palco de uma boate. Além de trazerem uma interpretação fraca da atriz, essas inserções soam forçadas, lembrando os trechos similares nos filmes dos Irmãos Marx – não os tocados por Harpo e Chico, mas pelos atores em papéis de galãs. Aliás, Leo McCarey é o diretor de O Diabo a Quatro (Duck Soup, 1933), dos Marx Brothers.
O toque de McCarey
Por outro lado, McCarey sabe o que fazer atrás das câmeras, e isso fica evidente em Duas Vidas. A paixão a princípio improvável entre os protagonistas se torna coerente por causa das pausas para reflexão nas quais eles repensam suas vidas. Vemos isso na capela da avó, e no acima citado momento em que Terry canta acompanhada do piano. E o beijo que eles trocam acontece atrás de uma porta, que deixa claro o obstáculo dos relacionamentos atuais que impede que eles deem vazão imediata à essa paixão. Outro instante de epifania acontece quando Terry sai à sacada de seu luxuoso apartamento e olha para fora, mirando para cima. Então, no reflexo do vidro da porta, avistamos o Empire State Building, local do encontro com Michel. E, logo em seguida, ela resolve se mudar dali.
Mas, a suprema maestria de McCarey – e do roteiro – desponta na tensa cena na qual o amargurado Michel reencontra Terry. Com cinismo, ele protesta indiretamente por ela não aparecer no encontro e sequer se explicar. O espectador vê a injustiça porque sabe da tragédia que a impediu de se apresentar no local. Porém, Michel não sabe disso, e a maneira como o filme revela isso é muito engenhosa, por meio do quadro que ele pintou e ela adquiriu gratuitamente por causa de suas necessidades especiais.
McCarey tinha ganhado o Oscar de melhor diretor por Cupido é Moleque Teimoso (The Awful Truth, 1937), que também era estrelado por Irene Dunne. Depois, receberia mais dois prêmios da Academia, pela direção e roteiro de O Bom Pastor (Going My Way, 1945). Não só pelos prêmios, mas essencialmente pelos seus filmes, McCarey é um diretor de talento, que nem todos valorizam.
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Ficha técnica:
Duas Vidas | Love Affair | 1939 | Estados Unidos | 88 min | Direção: Leo McCarey | Roteiro: Delmer Daves, Donald Ogden Stewart | Elenco: Irene Dunne, Charles Boyer, Maria Ouspenskaya, Lee Bowman, Astrid Allwyn, Maurice Moscovitch.