O filme Horizonte tem uma proposta que é uma joia rara no cinema brasileiro, pois traz uma transição entre gêneros. Melodrama na primeira metade, vira comédia romântica na segunda. No entanto, é uma joia sem brilho, como um diamante bruto. O roteiro de Dostoiewski Champangnatte e a direção do estreante Rafael Calomeni não conseguem transformar essa ideia em um bom filme.
O único personagem presente em todo o longa é Rui (Raymundo de Souza), um senhor de 72 anos. O enredo se inicia com a morte do irmão dele, Pedro. Seguindo um testamento falsificado, a casa onde os irmãos moravam, numa pequena cidade goiana, é dividida entre Rui, Juarez e Junior (esses dois últimos são o pai e o filho de Pedro). Na primeira cena, o valentão Juarez determina à força que ele, sua esposa e a filha morarão na casa principal, e Rui e Junior na edícula dos fundos. Além disso, é mandatório que os dois grupos não se relacionem.
A escolha da direção para filmar essa sequência inicial traz a má impressão de improvisação. Em um plano único, a câmera na mão se movimenta para lá e para cá, passando por trás de colunas e de personagens. A princípio, acompanha Sonia, a esposa de Juarez, a quem segue posteriormente. O movimento é truncado, nada discreto, como se fosse obrigatório se alinhar à grosseria do personagem que domina a cena. Os diálogos não soam naturais, o que faz a situação se desenrolar aos trancos. O som, ainda por cima, está estridente.
Ruídos
O roteiro continua a criar ruídos na primeira metade do filme. Diante da truculência do chefe da família que leva o patriarcalismo ao extremo, parece irrelevante que a vizinha proteste contra o pedido dele para a esposa esquentar o frango para ele. Em outro momento, na festa de noivado, o patrão de Juarez pergunta qual é o nome do Rui quando resolve chamá-lo na edícula, embora já tenha dito o nome dele antes na conversa à mesa.
Depois, outras inconsistências desafiam a paciência do espectador. Quando Rui se inscreve para um programa de uma ONG que entrega imóveis de graça para a moradia de idosos, uma das condições para aprovação é não possuir um imóvel. Ora, desde os primeiros momentos o roteiro mostra que Rui recebeu 1/3 da casa onde morava com o irmão. Portanto, ele tinha um imóvel e não se qualificaria para o programa.
Ainda na primeira metade, o filme faz um apelo barato ao sentimentalismo. Nesse sentido, em vários trechos, Rui está na tela tocando a vida nessas ingratas condições impostas. Enquanto isso, um dedilhado de violão sempre surge como música de fundo. A resignação funciona no melodrama, mas não com essa abordagem nada sutil, que tenta forçar o espectador a sentir pena do protagonista.
Vizinha cobiçada
Na segunda metade do filme, Rui se muda para uma dessas casas do programa, que se chama Vila Horizonte. E, lá tenta conquistar Jandira (Ana Rosa), a vizinha da casa da frente, numa rua que não tem outros moradores. O truque para ele seduzir a vizinha está no seu talento musical. Com um violão, ele se senta numa cadeira de praia em frente à sua casa, e se põe a cantar. Certa vez, a senhora da frente aparece aplaudindo e pede um bis da música “Boneca Cobiçada” (originalmente gravada pela dupla Palmeira e Biá). Mas a mulher é grosseira, e são necessárias várias repetições dessa canção para quebrar o gelo dela e realizar a paquera. Até lá, e persistindo ainda durante o namoro, o espectador não aguenta mais ouvir “Boneca Cobiçada”.
Algumas ousadias da direção não funcionam, Como a roupa do casal que muda enquanto Rui toca a música para Jandira. Faria sentido se representasse a passagem de vários dias. Mas, na narrativa, não é o que acontece. Aliás, o filme expressa o decorrer do tempo com um recurso mais pobre: a cartela no canto da tela dizendo: “Dias depois”. Da mesma forma, não se justifica o uso do desfoque para criar um suspense na visita que Rui recebe na última cena. Afinal, a surpresa não está em Rui, mas em quem vem visitá-lo.
Lapidando a joia
Por fim, há ainda outros erros tolos. Por exemplo, quando Rui chega ao escritório administrativo da Vila Horizonte, debaixo de uma imensa placa que identifica o empreendimento, Rui confere o endereço num papel como se ainda procurasse o local. E que dizer da cena em que Rui vai comprar dois sorvetes na barraquinha na praça, e a vendedora já está com os dois na mão? E o freguês nem escolhe o sabor?
Enfim, vários problemas em Horizonte poderiam ser resolvidos numa revisão antes do lançamento, feita por algum analista não envolvido na produção. Com essa etapa, seria possível retirar esses trechos questionáveis. E, dessa forma, revelar o brilho potencial desse diamante bruto.
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Ficha técnica:
Horizonte | 2024 | Brasil | 108 min | Direção: Rafael Calomeni | Roteiro: Dostoiewski Champangnatte | Elenco: Raymundo de Souza, Suely Franco, Alexandra Richter, Ana Rosa, Pérola Faria, Ronan Horta, Arthur de Farah, Paulo Vespúcio.
Distribuição: A2 Filmes.
Assista ao trailer aqui.