Arte e política sempre foram instâncias muito ligadas no cinema de Amos Gitai, desde Esther (1986), seu fenomenal primeiro longa de ficção, em que a história perde a linearidade para que passado e futuro se juntem, assim como nos estilosos Kippur (2000) e Kedma (2002), que se colocam como críticas a Israel e procuram um cinema mais formalista, consciente das possibilidades exclusivas dessa arte, e também em sua obra-prima, Berlim-Jerusalem (1989), em que um travelling une duas cidades distantes geográfica e historicamente.
Com Uma Noite em Haifa (2020), seu mais recente longa, parte da programação da Mostra de Cinema Israelense exibida online pelo Cinesesc, Gitai explora novamente contornos políticos procurando, ao mesmo tempo, novas formas para sua arte. Só por ambientar o filme em Haifa, cidade portuária chave na relação entre Israel e Palestina, sendo ele um israelense também nascido em Haifa, e talvez por isso sempre crítico à postura de Israel na questão, já traz por si só o ingrediente para a combustão.
Microcosmo
Cinco mulheres vivem em torno de uma casa noturna. Anexada à casa existe uma galeria de arte, pois a ambição de sua dona, Laila (Maria Zreik), é trabalhar com isso nos Estados Unidos. Essa casa funciona como um refúgio contra a violência do dia a dia na região, uma espécie de lugar onde as pessoas podem dançar, beber e conviver pacificamente apesar de suas diferenças ideológicas e de entendimento do mundo.
Quando Laila resolve fazer uma exposição de fotos com um artista israelense, Gil (Tsahi Halevi), que documenta revolucionários palestinos, seu marido, Kamal (Makram Khoury), tem receio de que essa atitude política possa atrapalhar seus negócios ou significar perigo para a esposa. Então tudo se resume à necessidade de se dar um passo maior, arriscando posições conformistas para criar um espaço verdadeiramente inclusivo, um microcosmo do que deveria ser a região.
Como sempre, Gitai não nos mostra esses dramas numa narrativa convencional, embora esta pareça assim até certo ponto. Sempre com jogos de câmera ou etapas de encenação – da galeria para o bar, do bar para a cozinha – visando conjugar os ambientes e as vidas que nele circulam.
Por vezes o filme se perde um pouco nos pequenos dramas, e nos faz pensar se é só isso mesmo ou se há algo mais por trás dessa ode à arte como política que se transforma num filme de encontros. Se o protagonismo é dividido mesmo entre as cinco mulheres da sinopse, é um protagonismo estilhaçado, e a verdadeira protagonista é a casa noturna que abriga também uma galeria de arte.
Além da sinopse
Acompanhamos alguns personagens mais do que outros. Laila e Kamal, por exemplo, assim como Gil, são mais constantes do que a garota israelense, meia-irmã de Gil, ou o casal homossexual. Parece então que a sinopse, mais uma vez, não dá conta do que é o filme, se é que alguma vez dá conta quando se trata de bons filmes. Porque a narrativa de Gitai vai se revelando aos poucos, desafiando a necessidade de se fazer sinopses que não entreguem muito o que acontece. É como se o cineasta resistisse à ideia de resumir seu filme em algumas frases para atrair espectadores.
Há ainda, no lado problemático, uma série de cenas, por vezes uma logo após a outra, em que um dos personagens sai quieto e triunfante após ter dito algo de maior impacto, como uma pequena bomba lançada antes de encerrar a conversa. É um tipo de artifício cinematográfico dos mais batidos, usado aos montes em telenovelas, que Gitai não pensou em evitar apesar do seu desejo habitual de contar uma história de modo diferente. Se acontece uma vez, vá lá, mas várias vezes, como acontece aqui, é um pouco decepcionante vindo de Gitai.
Encontro às escuras
Mas o filme se deixa ver com facilidade. Gitai tem uma direção de câmera sempre precisa, alternando movimentos e enquadramentos muito bem escolhidos. Além de sua verve crítica permanecer forte. Um dos encontros que acontece no bar, sem nada ter a ver com os dramas principais, ilustra bem a política do cineasta: uma mulher chega para um encontro às escuras; ela encontra o sujeito, que diz: “pensava que você era mais nova”; ao que ela responde: “pensava que você era mais judeu”; ele ri e pede desculpas por ter um hebraico péssimo e que a comunicação seria melhor em inglês. O encontro, como esperamos, evolui mal e precipitadamente, então Gitai pode voltar ao seu pequeno mosaico multiétnico.
Palestinos e israelenses se perdem em preconceitos diversos, incluindo o etarismo, enquanto a língua mãe, do imperialismo mais nefasto, dos EUA, domina as relações entre as pessoas. Não há como culpar quem assim prefere se comunicar, pois o inglês se tornou mesmo uma língua quase universal. Mas a escolha de colocar esse encontro às escuras se desenrolando dessa forma em um filme passado em Haifa é primordial nas intenções de um diretor que jamais deixou de se posicionar criticamente, desagradando muita gente em sua própria terra.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Uma Noite em Haifa | Laila in Haifa | 2020 | 1h39 | Israel, França | Direção: Amos Gitai | Roteiro: Marie-Jose Sanselme | Elenco: Maria Zreik, Khawla Ibraheem, Bahira Ablassi, Naama Preis, Tsahi Halevi, Makram Khoury.