Mães de Verdade traça uma perspectiva sem julgamento das partes envolvidas numa adoção, dentro da sociedade japonesa contemporânea.
A história
Um casal que não pode ter filhos adota um menino logo após ele nascer. A mãe é uma menina de 14 anos que a família obriga a esconder a gravidez. Por isso, ela passa a gestação afastada em uma instituição particular que facilita a adoção. E, após alguns anos, a jovem entra em contato com a família adotante.
Essencialmente, o roteiro conta essa estória em uma estrutura não linear, começando no cotidiano do presente. Nesse processo, o casal enfrenta problemas para criar o filho adotivo, prestes a entrar no ensino fundamental.
A partir daí, o filme aborda, em blocos separados, o passado do casal e da mãe biológica, sem pressa e sem julgamentos. Afinal, no Japão, ainda há preconceito com a adoção e com a gravidez precoce, e Mães de Verdade faz, por isso, questão de construir personagens verdadeiros, humanizando-os. E, o filme detalha tanto a infertilidade do casal como a gravidez da adolescente nos tons dramáticos corretos, sem exageros, e sem resumos superficiais.
Análise do filme
Essencialmente, a diretora Naomi Kawase, neste seu décimo segundo longa-metragem ficcional, se deixa influenciar pelo cineasta Yasujiro Ozu, mestre do drama do dia a dia. Além do tema, os cinemas de Kawase e Ozu aqui se conectam nos recursos utilizados. Nesse sentido, Kawase retoma os pillow shots de Ozu para dar tempo para o espectador refletir sobre a cena que acabou de assistir. Por isso, depois de algum momento de forte emoção, a tela apresenta um breve trecho de algum plano alheio à narrativa, como folhas das árvores, flores, ou uma parte de um prédio.
Além disso, fica evidente que todos os detalhes de Mães de Verdade foram especificamente planejados. Às vezes, para comunicar o que sente, ou pensa, o personagem. Por exemplo, a cena em que a mãe biológica entra na casa dos pais que adotaram seu filho. Assim, ao tirar seus sapatos, ela vê o par dos pequenos tênis do menino, o que interiormente lhe causa uma ansiedade enorme, não expressada de outra forma na cena.
Em outros casos, o detalhe é essencial para ludibriar o espectador, e o filme o conduz repetidamente a errar nas suas previsões sobre a trama. De fato, isso pode ser observado quando a mãe adotante cumprimenta a mãe biológica, na maternidade onde esta acaba de dar à luz. Como podemos observar. a menina está cabisbaixa, e a câmera não permite que o espectador veja o seu rosto. Porém, quando ela entrega uma carta à mãe, elas se olham. À primeira vista, parece que, por um erro na edição, faltou o contraplano do olhar da mãe para a menina. Porém, essa elipse é proposital, e se justificará na parte final do filme.
Blocos narrativos
Sob outro aspecto, Mães de Verdade diferencia os blocos narrativos nos seus tons. Por um lado, no capítulo do casal que descobre a incapacidade de gerar filhos, impera um drama pesado. Por outro, quando entra o relato da menina, o filme abraça o romance adolescente, predominantemente. Além disso, há espaço até para um trecho que imita um documentário televisivo, quando retrata as grávidas no instituto de adoção.
E essa ambientação policromática resulta numa grande fluidez do filme, que faz passar despercebida sua duração de mais de duas horas e vinte minutos. Mas um recurso se nota presente em todo o filme, mantendo sua unidade visual. É a luz natural que surge, quase estourada, em vários momentos, mais evidente nos picos dramáticos.
Enfim, suspeitamos que tal luz não seja o ponto em comum somente dentro do filme, mas também da diretora Naomi Kawase como sua marca autoral. O título original de Mães de Verdade é “Asa ga kuru”, cuja tradução é “a manhã virá”. Ele traz a ideia do sol nascendo e trazendo a luz, reproduzida em mais de uma cena no filme. Além disso, o brilho também está no significado do nome da personagem da mãe adolescente, Hikari. E este é também o nome original do filme Esplendor (2017), de Kawase.
Por fim, a luz merece também ser a base para qualificar este filme que é a obra-prima da diretora: brilhante.
Obs: assistimos a Mães de Verdade na programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Ficha técnica:
Mães de Verdade (Asa ga kuru) 2020, Japão, 140 min. Dir: Naomi Kawase. Rot: Naomi Kawase, Izumi Takahashi. Elenco: Arata Iura, Miyoko Asada, Hiroko Nakajima, Hiromi Nagasaku, Taketo Tanaka, Aju Makita, Tetsu Hirahara, Go Riju, Reo Sato, Taketo Tanaka. Distribuição: Califórnia Filmes.
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