O cineasta português João Canijo dirigiu seu primeiro filme em 1988, um curta-metragem. Em 2023, lançou seu 16º e seu 17º longas, Mal Viver e Viver Mal, relacionados entre si. O primeiro estreia agora, em 18 de janeiro.
Mal Viver
Mal Viver traz Piedade (Anabela Moreira) como protagonista, mas as outras quatro personagens femininas também dividem o centro da trama. Ela e sua irmã Raquel (Cleia Almeida) moram no hotel da família, que ainda é administrado pela mãe delas, Sara (Rita Blanco). O ex-marido de Piedade acaba de morrer e, por isso, sua filha Salomé (Madalena Almeida) chega ao local. Logo de cara, quebrando a câmera estática do plano geral com Piedade à beira da piscina, o filme revela que mãe e filha não se relacionam bem. Basta uns minutos mais para percebermos que similar antagonismo vem da geração anterior, pois Sara não é nada carinhosa com suas filhas.
Uma cena, na segunda metade, simboliza essa dura característica que passa de mãe para filha. Nela, Piedade sai da sua cama porque não consegue dormir com a filha Salomé, que num momento de carência pedira esse conforto da mãe. Esta a abandona dormindo e vai para o quarto da sua mãe Sara. Para conseguir algum gesto ou palavra de carinho, Piedade precisa insistir muito. Mas, no final, o encontro acaba numa agressão moral e física, jogando por terra qualquer esperança de uma reconciliação.
Piedade, por sinal, é a fonte maior dos conflitos. Sara se dá bem com a neta Salomé, por exemplo, e embora pegue no pé da outra filha para que tenha filhos, a relação é menos beligerante com ela. Mas a prova cabal desta constatação surge quando todas, exceto Piedade, se divertem vendo um álbum de retratos. E quando Piedade chega, o clima muda. Contudo, Mal Viver tem mesmo como tema central os atritos interpessoais, inclusive entre os hóspedes, perspectiva que ficará em foco em Viver Mal.
Espiar a intimidade
O diretor João Canijo deixa transparecer esse cenário de discórdia em seu estilo seco, sempre com a câmera sobre o tripé, movimentando-a economicamente apenas quando precisa acompanhar algum personagem. Nos seus enquadramentos, os rostos podem ficar de fora – se não cabem as cabeças de duas atrizes que contracenam, uma delas terá sua parte superior cortada pela câmera. Em muitos planos gerais, não sabemos onde está a personagem central da cena – às vezes está no canto da tela, como no trecho que abre o filme. Ou, então, quando enquadra as janelas do hotel, ouvimos vozes mas não sabemos quem, entre as pessoas que vemos, está falando. A fotografia nas tomadas noturnas está escura, dificultando vermos quem está em cena. É tudo como um exercício constante de espionar a intimidade alheia. Aliás, o ato de espiar é comum nessa família em crise.
Em sua crítica para a Folha, Sérgio Alpendre chama esses dois filmes de dípticos. Pela leitura do seu texto, sentimos que Mal Viver crescerá após assistirmos ao seu congênere. Mas, este primeiro filme que vimos já é, por si, um envolvente mergulho no melodrama familiar.
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Ficha técnica:
Mal Viver | 2023 | Portugal | 127 min | Direção: João Canijo | Roteiro: João Canijo | Elenco: Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Vera Barreto, Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos.
Distribuição: Zeta Filmes.