Um filme sobre distopia que se passa no Brasil. Poderia ser Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness, 2008), de Fernando Meirelles, que parte da abordagem universal de Jose Saramago e localiza a história aqui. O longa Medida Provisória, de Lázaro Ramos, permite o efeito inverso. A partir de uma terrível possibilidade futura no nosso país, expande para o que poderia acontecer em outras nações que utilizaram escravos negros no passado. Então, como uma potente história de distopia, sugere um porvir trágico que não é de todo impossível.
Num futuro próximo, no Brasil, a tal medida provisória do título determina que todos os cidadãos negros do país retornem ao continente africano. Cinicamente, o governo vende isso como uma solução salutar, que beneficia a todos. Embora seja uma medida coercitiva, alguns resistem. Após um certo tempo, todos consideram que os irmãos Antônio (Alfred Enoch) e André (Seu Jorge) sejam os últimos negros do Brasil. Mas, além deles, existe um grupo clandestino que vive escondido, onde se abriga Capitu (Taís Araújo), namorada de Antônio.
Da comédia à tensão
O filme demora um pouco para engatar. Na sua primeira parte, quando apresenta o cenário desse Brasil do futuro com um conflito de classes perto da ebulição, o tom pende entre o sério e a comédia sarcástica. Para caracterizar o quão absurda essa situação poderá ficar, a trama enfileira algumas futuras mudanças. Os negros, por exemplo, preferem ser chamados de cidadãos de melanina acentuada. Além disso, a ilusão de todos receberem uma indenização pelo tempo em que seus ancestrais trabalharam como escravos acaba não dando em nada. Pelo contrário, isso ainda dá forças para o projeto “Resgate-se já”, aquele que pretende devolver os negros para a África. Nos diálogos, se levantam rapidamente temas de forte discussão hoje, como as cotas nas universidades, e brincadeiras como quem é considerado negro. A trilha sonora corrobora com o clima de zombaria.
A partir da instituição da Medida Provisória, o tom se torna sinistro, e o filme melhora. Cresce a tensão porque acompanhamos os protagonistas fugindo da polícia que captura todos os descendentes de africanos para mandá-los de volta para o continente de origem. O clima de perseguição nas ruas remete aos piores da história da humanidade, das ditaduras apoiadas pela maioria cegada pelos interesses próprios e egoístas.
Melhores momentos
Entre os momentos fortes do filme, destacamos as cenas paralelas do branco, namorado de um dos líderes do grupo de resistência negra, e de André, capturado pela polícia branca do governo. Os dois se tornam vítimas dessa cegueira coletiva. O ódio não é próprio de cada um dos algozes individualmente, mas desse comportamento grupal que não pensa. Além disso, chama também atenção a ousadia do diretor Lázaro Ramos ao construir o momento de reflexão do protagonista Antônio tendo como pano de fundo a narração de um texto, e não o habitual silêncio. Por outro lado, sentimos falta de uma atuação menos passiva do grupo de resistência, que não faz nada além de se esconder. E uma solução para Capitu conseguir chegar ao prédio de Antônio sem ser parada pela polícia.
Mas, talvez a cena mais emblemática seja aquela em que André, com a intensidade que Seu Jorge coloca nos personagens que interpreta, passa tinta branca no rosto para sair do apartamento às escondidas. É uma resposta para o “black face” que o cinema tanto usou no passado, quando atores brancos colocavam pintura preta no rosto para representar personagens negros. Logo depois, na mesma sequência, André toma uma ducha e se limpa dessa sujeira. A comunidade negra do audiovisual agradece ao cineasta Lázaro Ramos por essa reparação.
Então, pelo menos nos dois terços finais de Medida Provisória, encontramos o equilíbrio entre a mensagem, que não deixa de ser panfletária, com o entretenimento, numa trama cheia de tensão. É o cinema engajado que não deixa de ser divertido.
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Ficha técnica:
Medida Provisória | 2020 | Brasil | 103 min | Direção: Lázaro Ramos | Roteiro: Lázaro Ramos, Lusa Silvestre, Aldri Anunciação, Elísio Lopes Jr. | Elenco: Alfred Enoch, Taís Araujo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Mariana Xavier, Flavio Bauraqui, Emicida.
Distribuição: Elo Company / H2O.