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Memória (filme)
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Memória | Por Sérgio Alpendre

Avaliação:
7.5/10

7.5/10

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Crítica | Ficha técnica

Logo no início de Memória, mais recente longa do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, a escocesa Jéssica, interpretada por Tilda Swinton, dorme num quarto colombiano quando um estrondo cheio de eco e grave a acorda. Assustada, ela anda pela casa à procura de alguma explicação para o barulho ouvido, semelhante ao passo de um gigante em filmes de ficção científica. Nós, obviamente, vamos descobrir com ela, se é que ela vai descobrir alguma coisa que não o seu lugar no mundo, na história, na família.

Saímos, ainda no início, da casa onde está a protagonista e vamos para um estacionamento. A revolta das máquinas. Todos os alarmes dos carros começam a soar, num barulho irritante e inexplicável. O que teria causado o disparo além de um diálogo impensado com o Holy Motors de Leos Carax? Na cena seguinte, voltamos a ver Swinton, desta vez num hospital, acompanhando sua irmã, que está internada.

Dessa maneira, vamos tomando conhecimento da trama do filme, da protagonista e sua pequena esfera de amizades, de seus hábitos e questionamentos. Bem, trama não é bem a palavra quando se trata de Apichatpong. Memória fala de sensações, auditivas principalmente, mas não só. E mostra uma personagem em claro descompasso com o que está à sua volta. O descompasso não a abala, antes, a deixa cada vez mais curiosa.

O ritmo, como sempre em seus filmes, é de instalação. A câmera fica estática por muito tempo, ou realiza travellings laterais pelas ruas que remetem ao News from Home de Chantal Akerman ou ao Berlim Jerusalem de Amos Gitai. Essas associações podem estar só na minha cabeça, mas não me surpreenderia em saber que, em sua ocidentalização, temporária ou não, Apichatpong tenha buscado algumas referências. E os travellings laterais dos filmes citados são marcantes o suficiente para servirem como modelo.

O som

Falam muito do trabalho de som, que é realmente forte, embora pareça construído demais para impressionar; o ruído constante de fundo servindo para enredar o espectador na teia sonora e reforçar o extracampo do encontro final. E me parece que o mérito no uso do som é mais técnico do que criativo, artístico, a não ser pelo que é externo ao som em si; e tem mais a ver com o pensamento por trás da realização de um trabalho de som tecnicamente perfeito.

Porque Memória é um tratado sobre o uso do som – da chuva, de instrumentos musicais, de alarmes – e do entendimento errado que um som pode causar – um estrondo que se assemelha a muitas coisas e a nada mais imediato, um escapamento estragado que parece um tiro de arma de fogo, de sons pré-gravados eletronicamente que se aproximam do estrondo inicial, ou de como se pode reproduzir, com uso de eco, o som misterioso ouvido anteriormente.

Nesse sentido, a cena crucial é aquela, de pouco mais de dez minutos, em que a protagonista visita um técnico de som e ambos ficam pesquisando sons pré-gravados na busca de algum que se aproxime do que ela ouviu.

Campo e extracampo

O truque aí é que, extra-diegeticamente pensando, foi provavelmente da mesma maneira que o som apareceu pela primeira vez no filme; embora na diegese ele simule algum som misterioso nos arredores da cidade, um mistério que será resolvido somente no fim do filme, ao menos parcialmente. Temos, então, numa leitura mais arriscada, que o filme remete à procura de um som produzido em estúdio, a procura do artificialismo, do simulacro, talvez para melhor dominá-lo.

Muito do que ouvimos se passa no extracampo, sobretudo na meia hora final. O que mais me impressiona neste filme de Apichatpong, contudo, é o campo: a relação de Tilda Swinton com o espaço, suas andanças pela cidade e pelas zonas rurais, as errâncias pela Universidade, a inadequação com os caminhos burgueses, a breve interação com um cão de rua, o encanto pela música (o entrosamento da banda e a atenção dos presentes) e pela natureza.

O diretor parece buscar um outro sentido para seu cinema, num movimento de distanciamento e reencontro parecido com o que fez Tsai Ming Liang em Visage, com a vantagem de que Swinton se encaixa melhor nesse propósito condutor de sensibilidades distintas que Mathieu Amalric e a desvantagem por Tsai ser um cineasta superior. Curiosamente, Memória é o filme mais ming-lianguiano de Apichatpong.

Nessa busca, há coisas muito belas, outras nem tanto; o filme se enfraquece consideravelmente na segunda metade, após a belíssima execução de um jazz por estudantes de música. Mas é obra de um autor que está inquieto, preocupado com seus artifícios habituais e com o efeito que eles provocam. Saberá se desvencilhar deles no futuro ou usá-los com maior maestria? É o que veremos nos próximos capítulos de sua história no cinema.

Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.


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