Quando Martin Scorsese dirige filmes pequenos, de baixo orçamento, o resultado pode ser brilhante. Com mais liberdade e controle, o cineasta nova-iorquino pode experimentar tudo que sua criatividade lhe pede. “Depois de Horas” é um dos melhores representantes desse tipo de obra de Scorsese. Uma montanha-russa agonizante de emoções, com uma forte misantropia como base.
O travelling inicial que velozmente conduz até Paul Hackett (Griffin Dunne), o personagem principal, antecipa o ritmo frenético do filme. Ao mesmo tempo, cria uma oposição ao ponto de vista dele, quando a câmera passeia pelas mesas de escritório do seu trabalho, evidenciando que ele está entediado. O que é pior para Paul é que ele ainda é o último a sair de lá. E uma tomada das ruas mostra ele pisando na calçada e os portões se fechando atrás dele.
Em sua casa, onde mora sozinho, as paredes e móveis apresentam tom monocromático. O que Paul faz é zapear pelos canais de TV. Essa falta do que fazer o leva a ir a uma cafeteria para ler “Trópico de Câncer”, de Henry Miller. O livro serve para que Marcy (Rosanna Arquette) puxe conversa com ele. A forte cor laranja do local se contrapõe ao tom da casa de Paul Hackett. Dessa forma, ilustra que o objetivo dele de ir ao local era encontrar um pouco de ação, o que acaba acontecendo. Paul Hackett aceita o convite de Marcy para visita-la no apartamento onde está no bairro do Soho.
Tudo dá errado
Mas, tudo dará errado para Paul Hackett nessa noite, de início, promissora. Desde o táxi que o leva até Marcy, quando ele deixa voar pela janela uma nota de vinte dólares, que era todo o dinheiro que ele tinha. Scorsese insere uma cena com a nota voando em câmera lenta, como se fosse uma dança. Essa nota, talvez a mesma, voltará à trama grudada numa estátua de papel machê. A cena do táxi é o primeiro acontecimento ruim da noite, e o filme respeitará uma montagem rítmica motivada pelos elementos da ação que impulsionam para a próxima sequência. Um fato ruim acaba levando ao próximo.
Durante o filme, o personagem continua sendo construído, ganhando maior profundidade. Paul Hackett agirá de forma violenta com Marcy, suspeitando que ela possui várias queimaduras pelo corpo. O espectador compartilha dessa dubiedade suposta de Marcy, pois Scorsese aplica um zoom que termina no close up dela, criando, ao mesmo tempo, um tom sedutor e ameaçador. Compreendemos a reação de Paul Hackett porque ele relatou a Kiki (Linda Fiorentino), amiga de Marcy, uma experiência traumática com queimaduras quando ainda era criança.
Os neuróticos da noite
Paul Hackett passa os eventos aterrorizantes da noite conhecendo vários personagens, todos com suas neuras, mesmo aqueles aparentemente dóceis, revelando o lado sinistro justamente com ele. Chega um momento em que o bairro todo o persegue porque têm certeza de que ele é o ladrão que está assaltando os apartamentos do local. Paul Hackett, ao longo dessa jornada, também trata mal algumas dessas pessoas, que se vingam colaborando com a patrulha de vigilantes. Na essência, parece que ninguém quer ajudar o próximo, e aqueles que em princípio querem, acabam mudando de lado por alguma birra pessoal. A cena em que Paul Hackett está preso dentro de uma estátua, a mesma feita de papel machê com a expressão do quadro “O Grito” de Edvard Munch, é a perfeita representação da situação de Paul Hackett, indefeso, à mercê da vontade dos outros.
“Depois de Horas”, por isso, guarda certo ranço de misantropia, acentuado na cena final, quando Paul Hackett retorna aliviado para o escritório. Depois de passar a noite inteira fugindo das pessoas, depois de conhecer tanta gente nova e todos se virarem contra ele, Paul Hackett é recebido com um confortador “bom dia” do seu computador, e, em seguida, um travelling passeia, então, pelo escritório vazio – a única “companhia” dele é o seu CPU com monitor.
Livre de pressões do estúdio, Martin Scorcese se sente à vontade para exercitar seu maneirismo, e movimenta a câmera dinamicamente, sempre em função da narrativa, criando um filme intenso e longe de ser insípido. “Depois de Horas” antecipa outros filmes da época no mesmo estilo, como “Arizona Nunca Mais” (1987), de Joel e Ethan Coen, e “Te Pego Lá Fora” (1987), de Phil Joanou.
___________________________________________
Ficha técnica:
Depois de Horas (After Hours, 1985) EUA, 97 min. Dir: Martin Scorsese. Rot: Joseph Minion. Elenco: Griffin Dunne, Rosanna Arquette, Verna Bloom, Linda Fiorentino,Teri Garr, John Heard, Tommy Chong, Cheech Marin, Catherine O’Hara, Dick Miller, Will Patton, Robert Plunket, Bronson Pinchot, Rocco Sisto, Larry Block, Victor Argo, Robin Johnson, Martin Scorsese.
Assista à vídeo-crítica no nosso canal:
Leia também: crítica de “Touro Indomável”