O filme O Acontecimento (L’événement) leva para as telas o livro de Annie Ernaux sobre sua experiência com o aborto. Segundo Gabriel Pinheiro, do site Culturadoria, no texto “que é cru, direto e, por vezes, brutal, a autora enfrenta um passado assombrado pelo medo e pela dor – emocional e física.” Pois a diretora Audrey Diwan consegue ser fiel a esse conceito, e permite que o espectador vivencie a experiência solitária da protagonista Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei), uma jovem que engravida e quer abortar quando o procedimento ainda era ilegal na França dos anos 1960.
A trama se concentra em Anne, que estuda Literatura na universidade e mora numa pensão para estudantes mulheres, pois sua família mora no interior. Antes mesmo de descobrir que está grávida, ela já é alvo de preconceito e chacotas pelas colegas da turma que posam de certinhas. E a descoberta, claro, é um enorme choque, e o filme reforça o seu desespero em realizar o aborto nas cartelas que mostram o tempo da gravidez em semanas, como se fosse uma contagem regressiva. A luta é solitária porque os médicos não podem (e alguns nem querem) ajudá-la, as amigas são tão inexperientes quanto ela, e o rapaz que a engravidou demora para ir atrás de uma solução. Além disso, ela não quer que os pais saibam da gravidez.
Arrasador
O Acontecimento sensibiliza sem apelar para o sentimentalismo barato. O sofrimento que a atriz Anamaria Vartolomei expressa com garra e credibilidade não vem de momentos forçados de autopiedade. Pelo contrário, ela enfrenta o desafio com tenacidade. A primeira imagem que causa um enorme baque no público é a tentativa de autoaborto, evidenciando todas as dores provenientes desta experiência.
Contudo, é no terço final da trama que o drama se torna arrasador. Já perto do limite do período em que a gravidez é irreversível, ela encontra uma pessoa que realiza o aborto clandestinamente. A diretora Audrey Diwan filma a cena do procedimento com precisão. Mantém a câmera fixa por trás do ombro de Anne, muito próximo de uma tomada subjetiva. A secura da mulher torna ainda mais evidente a luta solitária da jovem. Esse plano fixo não tem nenhum corte, e o tempo fílmico é o tempo real. Um trecho duríssimo de se assistir, muito próximo do que a protagonista deve ter vivido na realidade.
Mas, o filme ainda surpreenderá o espectador com outra cena forte. Desta vez, a revelação é instantânea, quase não vemos o desfecho final do aborto. Não é um filme de terror, mas assusta; na verdade, até mais. O Acontecimento supera a agitação de uma bandeira a favor do aborto ao contar com coragem uma história real. Tanto o livro como o filme revelam com autenticidade o quanto sofre uma mulher que quer abortar, e como a alternativa ilegal é perigosa.
Este segundo longa dirigido por Audrey Diwan conquistou o Leão de Ouro em Veneza. Urge agora conferir o seu filme de estreia, Mais vous êtes fous (2019), inédito por aqui. Enquanto isso, dá para chegar na Netflix Bac Nord (2020), que tem Diwan como corroteirista. E ficar atentos para seu próximo trabalho.
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Ficha técnica:
O Acontecimento | L’événement | 2021 | 1h40 | França | Direção: Audrey Diwan | Roteiro: Marcia Romano, Audrey Diwan | Elenco: Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein, Luàna Bajrami, Louise Orry-Diquéro, Louise Chevillotte, Pio Marmaï, Sandrine Bonnaire, Anna Mouglalis.
Distribuição: Zeta Filmes.
Obs: o filme está na seleção do Festival Varilux de Cinema Francês 2022.