“O Artista” prova que você consegue assistir a um filme mudo!
Tinha tudo para ser um grande fracasso. Um filme mudo, em preto e branco, estrelado por um ator francês e uma atriz argentina interpretando astros de Hollywood no final da década de 1920. Contudo, o audacioso diretor e roteirista parisiense Michel Hazanavicius acreditou em seu projeto. Inclusive, ousou ainda colocar sua própria esposa, Bérénice Bejo, como protagonista. Como resultado, “O Artista” ganhou muitos prêmios, inclusive cinco Oscars, dentre eles o de melhor filme, melhor diretor e melhor ator (Jean Dujardin). E, mais importante de tudo, é um belíssmo filme.
A trama
A história não é original, e segue fórmula já usada várias vezes no cinema. George Valentin (Dujardin), um grande astro do cinema mudo, conhece casualmente uma de suas fãs, a aspirante a atriz Peppy Miller (Bejo). Encanta-se por ela e a ajuda a se iniciar na indústria do entretenimento. Entretanto, a paixão de ambos nunca vai além do platônico. Logo, o tempo passa, e o som chega aos filmes. Valentin rejeita a novidade, e sua carreira degringola. Enquanto isso, Miller se torna uma das maiores estrelas da época. Então, chega o momento em que Valentin deve deixar o orgulho de lado para viver seu amor por Bejo e ainda continuar atuando. Em suma, não muito diferente do enredo de Dançando na Chuva (Singin’ in the Rain, 1952).
Metalinguagem nostálgica
A magia de “O Artista” não se esconde nessa trama banal, mas na forma em que ela é contada por Michel Hazanavicius. Logo de cara, uma frase nos entretítulos do filme mudo que Valentin estrela, revela com humor o principal mote da estória. Seu personagem nesse filme dentro do filme está sendo torturado para revelar algum segredo. Porém, o herói afirma: “I won’t talk, I won’t say a word” (“Não falarei, não direi uma palavra”), justamente a razão da ruína de sua carreira, como se mostrará adiante. Essa aventura está sendo exibida em uma grande sala de cinema, com uma orquestra de verdade tocando a trilha sonora ao vivo, enquanto Valentin aguarda atrás das cortinas, de onde sai para ser ovacionado pela plateia. Essa jornada nostálgica aos tempos áureos do cinema mudo passa pela metalinguagem de desvendar os bastidores da produção cinematográfica.
O nome Valentin remete automaticamente ao maior astro dos cinemas do início do século 20, Rodolfo Valentino, que morreu aos 31 anos em 1926, vítima de úlcera. Dujardin baseia sua atuação nesses atores daquele momento, não necessariamente Valentino, que não exagerava tanto na sua expressividade. Em uma sequência muito original de pesadelo, ele escuta todos os sons diegéticos – telefone, latido do seu cachorro, até um exagerado som de uma pena ao tocar o solo – para escancarar o medo que tinha de os filmes mudos se extinguirem, o que em breve se confirmaria.
Elementos do cinema mudo
Além da interpretação dos atores e a ausência de som, o que também caracteriza o cinema mudo em “O Artista” são elementos típicos. Por exemplo, o uso de fade-outs com a íris da lente, o soft focus discreto e as bordas escurecidas em alguns trechos. Indo contra esse direcionamento, Hazanavicius usa bastante o shallow focus, em que o personagem principal está em foco e o restante ao fundo desfocado. O diretor opta, assim, por modernizar o cinema mudo com elementos de narrativa surgidos posteriormente.
Essa tentativa fica evidente ao se retomar, quase quadro-a-quadro, a cena do café-da-manhã de “Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1941), quando Valentin se senta em uma das pontas da mesa de sua casa, e sua esposa Doris (uma envelhecida Penelope Ann Miller) está no lado oposto.
E, cada vez que a câmera se alterna entre um dos personagens, este veste roupa diferente, para caracterizar a passagem do tempo. Na cena final, Valentin está lendo um jornal e Doris rabiscando a foto dele em uma revista. Como no filme de Orson Welles, a sequência comunica que o relacionamento do casal se deteriorou. Além disso, Hazanavicius se inspira em “Cidadão Kane”, também, na montagem de noticiários de jornais que relatam o que se passa na estória, porém com o toque de modernidade que faz as palavras saltarem dos papéis.
Imagens em movimento
No entanto, o cineasta não somente se apoia em outros filmes. A cena na qual Valentin se embebeda em um bar enquadra o balcão espelhado, onde se projeta a imagem do ator. Com isso, o espectador fica desnorteado, sem saber qual a imagem real e qual o reflexo, enfatizando a embriaguez do protagonista, sofrendo com seu fracasso. E outra bela cena original mostra o ator se reconstruindo ao posicionar seu rosto, refletido em uma vitrine, sobre um elegante fraque em exposição.
Por fim, o protagonista enfrenta a ameaça do som no cinema, simbolizado por várias bocas falantes passeando pela tela, ao entender que o seu erro foi deixar o seu orgulho impedir que aceitasse a mudança para o novo. Então, isso serve de ponte para Hazanavicius propor que o gênero musical surgiu dessa necessidade de artistas do cinema mudo se adaptarem aos filmes sonoros. Ou seja, sem necessidade de se expressarem falando, e sim dançando.
Dessa forma, “O Artista” prova que o espectador de hoje pode ainda apreciar o cinema como ele foi criado em seus primórdios: como imagens em movimento.
Ficha técnica:
O Artista | The Artist | 2011 | 100 min | Direção e roteiro: Michel Hazanavicius | Elenco: Jean Dujardin, Bérénice Bejo, John Goodman, James Cromwell, Penelope Ann Miller, Missi Pyle, Beth Grant, Ed Lauter, Joel Murray, Elizabeth Tulloch, Ken Davitian, Malcolm McDowell, Basil Hoffman, Bill Fagerbakke, Nina Siemaszko, Katie Nisa, Katie Wallack, Sarah Karges, Sarah Scott.
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