Entrevistamos Mathias Mangin, diretor do filme “Horácio”, que estreia nos cinemas brasileiros em 11 de abril, com distribuição da O2 Play. Confira a conversa e conheça um pouco mais desse raro filme de humor negro nacional, que conta com Zé Celso e Maria Luisa Mendonça no elenco.
Mathias, “Horácio” é um projeto bem pessoal seu, certo? Como e quando ele nasceu?
“Horácio” é um projeto que nasceu em dezembro de 2015 quando comecei a desenvolver o roteiro e trocar figurinhas com Marcelo Maximo que produziu o filme comigo. Tínhamos outro projeto grande nas mãos que não conseguíamos financiar e queríamos fazer um filme menor, que poderíamos fazer com pouco dinheiro e uma equipe enxuta. No início, Horácio era uma mulher, uma velha senhora, que lidava com os seus familiares no leito de morte. Aos poucos, os interesses de cada um iam se revelando e ela ia acertando as contas. O filme terminava numa catarse final onde todos os personagens se reuniam em volta do cadáver da senhora. Aos poucos, fui percebendo que eu precisava sair do núcleo familiar clássico. Escolhi o mundo do crime com agiotagem, chantagem e assassinatos, sempre tendo em mente o objetivo de fazer um filme que tivesse traços de um desenho animado conduzido por música clássica. Os cartazes do filme lembram histórias em quadrinho, um tipo de super-herói do bairro do Bixiga.
É verdade, o cartaz é bem bacana. O filme foi realizado pela sua produtora, Igloo Filmes. Os recursos foram próprios ou via financiamento público?
Com a O2 Play entrando como distribuidora, pleiteamos o FSA para comercialização em sala de cinema e tivemos a sorte de ganhar essa verba sem a qual o filme não iria pros cinemas. Infelizmente, antes da fase de distribuição não tivemos nenhuma verba pública, o que limitou bastante nossas semanas de pré-produção e de filmagem. Entramos em vários editais, mas apesar do elenco de peso, ninguém apoiou. Então, a Igloo produziu com recursos próprios e a ajuda de muitas pessoas que emprestaram locações e objetos. Os fornecedores apoiaram o projeto e uma equipe pequena, mas muito cooperativa e sintonizada, conseguiu transformar o roteiro num filme.
Antes de “Horácio”, você dirigiu “Next Year in Bombay”, codirigido com Jonas Parienté. Como você, um brasileiro, foi parar nessa coprodução da França, EUA e Índia?
“Next Year in Bombay” é um média-metragem sobre o dilema que a comunidade judaica bene-israel enfrenta na Índia. O dilema é o seguinte: permanecer na cidade de Bombay onde está ancorada essa comunidade tão indiana quanto judaica ou ir para Israel onde boa parte da comunidade reside e vive o sonho israelense. Eu sou franco-brasileiro e após muitos anos morando na França, tive a sorte de estudar por um ano nos EUA e ficar amigo do Jonas Parienté com quem fizemos o filme. Durante nossa estadia americana, fizemos um curta-metragem sobre parte dessa comunidade bene-israel que reside nos EUA, gostamos muito das pessoas que encontramos e tivemos vontade de ir além do curta, produzir um filme na Índia. Fizemos, em 2010, uma campanha de crowdfunding e levantamos o dinheiro para filmar durante quatro meses na índia, um país surpreendente e que me lembrou muito o Brasil. A nossa equipe era pequena: eu, Jonas e Savitri Medhatul, nossa assistente de produção indiana. Eu fazia a câmera, Jonas entrevistava e, no som todos íamos nos revezando.
Uma experiência e tanto! Falando sobre seu novo filme, “Horácio”, por que você decidiu assumir as funções de roteiro, direção, edição e produção?
A produção não assumi sozinho, Marcelo Maximo fez comigo e sem ele o filme não existiria. Fui escrevendo o roteiro, mas sempre dialogando muito com o Marcelo, com outras pessoas do cinema e a minha mãe que é escritora. A edição pra mim é indissociável da direção, eu não posso imaginar fazer um filme sem participar dessa fase. O editor faz o filme que quiser, traz o ritmo que quiser, conta a história que quiser. Quem sabe num próximo projeto com mais dinheiro e verba pública consigo ter um assistente de edição. Seria ótimo! Além disso, com a edição vem uma parte maravilhosa da construção cinematográfica, que é o uso do som e da música. A trilha desde o início foi pensada para ser uma mistura de música erudita e de música popular brasileira. Tive a chance de trabalhar com Tobias Kracochansky e André Ricardo que fizeram a mixagem do filme e a direção musical. Eles me incentivaram a criar uma trilha única pro filme, melodias que conversam muito bem com os sentimentos que o filme expressa.
“Horácio” se destaca das demais produções brasileiras por causa do seu humor negro. Quais foram suas influências para buscar esse humor negro?
Sou franco-brasileiro, talvez essa seja a maior influência. Tirando esse traço de personalidade que me leva a brincar, gosto muito do humor do Robert Altman, dos irmãos Coen, do Alfred Hitchcock em “Hitchcock Presents” e de filmes como “El Justiceiro” do Nelson Pereira dos Santos. Gosto da coisa absurda, daquele humor que não parece humor, que você precisa analisar várias vezes antes de dar risada. O humor no filme “Horácio” é esse, é rir de um mundo tão sombrio que a única coisa que sobra é o riso… Para mim, o riso não está só nos diálogos, é um jeito de escrever a cena e pensar. Será que esse comportamento é possível? Será que pessoas são capazes de viver num mundo tão brutal e achar que tudo está normal? Sim, é possível, mas tem alguma reação inconsciente, alguma falha que deve transparecer, mostrar que no fundo sabemos que algo está errado. O filme é narrativamente simples e bem eficiente, o foco foi procurar a camada de estranheza, algo que leve o espectador a olhar por trás das evidências da história.
Mathias, você acha que o público brasileiro está preparado para o humor negro ou prefere mesmo a chanchada que tem predominado nos filmes nacionais?
Nada contra chanchada, o meu filme se inspira na chanchada! É possível, como fez Tarantino, usar esse cinema popular para revelar de maneira original aspectos profundos da nossa sociedade. Acho que o gênero não é tanto o problema, e sim a repetição das mesmas coisas. Comédias que serão esquecidas dominam o panorama dos cinemas nacionais do nosso planeta terra. A França, um país com uma grande história cinematográfica, produz anualmente uma leva de comédias dramáticas idênticas e sem grande interesse. Acho difícil lutar contra isso. O público quer esses filmes para relaxar e os produtores querem produzir, mas acho que há espaço para tudo, acho que o público é muito mais aberto que o pressuposto geral. Se produtoras desenvolverem filmes que fogem da alçada clássica do cinema nacional, o cinema brasileiro vai continuar fazendo coisas novas e o espectador vai aos poucos amadurecendo com isso. O movimento para convencer o público é moroso, mas ele é possível se produtoras, distribuidoras e financiadores quiserem. E claro, se as distribuidoras defenderem filmes menos óbvios nos festivais internacionais.
Mesmo sendo esse seu primeiro longa de ficção, você conseguiu atrair nomes de peso para o elenco, destacadamente Zé Celso e Maria Luisa Mendonça. Como você chegou até eles?
Vou nas peças do Teatro Oficina desde criança e o Zé Celso sempre fez parte do meu imaginário criativo. Não penso em cultura brasileira sem que o seu trabalho passe pela minha cabeça. Com a diretora de elenco do filme, Anna Luiza Paes de Almeida, e Marcelo Maximo, chegamos à conclusão que o melhor ator para fazer esse papel era o Zé Celso. Então liguei pra ele e, após algumas ligações, consegui marcar um encontro e levar o roteiro. O que o Zé gosta mesmo é fazer teatro e eu cheguei lá com um projeto que não tinha muito a ver com ele, um roteiro com uma cara de chanchada estranha. Foram muitas conversas noturnas e algumas taças de vinho tinto que o levaram a aceitar. O Marcelo Drummond, que faz lindamente o papel do Milton, o Ricardo Bittencourt e a Sylvia Prado, que arrasam nos papéis da dupla de chantagistas, trabalham com o Zé há muitos anos e me ajudaram a convencê-lo! Sobre a Maria Luisa Mendonça, o encontro aconteceu graças a Anna Luiza. Fui ver a peça “Um Bonde Chamado Desejo”, que Maria Luisa interpreta com muita força, e levei o roteiro. Ela é muito engraçada e acho que enxergou no roteiro o humor que eu queria dar ao filme! Mais uma coisa, Zé queria muito fazer o filme com ela. Ele me disse, “Maria Luisa é minha filha espiritual”, acho que isso convenceu todo mundo.
E como se sentiu dirigindo um artista experiente como o Zé Celso, foi intimidador?
Não foi intimidador, a parte difícil foi trazê-lo para o filme, mas a partir do momento em que aceitou, tudo correu tranquilamente. Passei algumas horas no telefone com ele, ouvindo textos do Stanislavski e sua interpretação do que era atuação, direção de ator. No set, Zé foi de uma gentileza única, ajudou a criar o personagem do Horácio improvisando genialmente e entendendo o que eu queria. Aos poucos ele foi entrando na atuação do cinema, na coisa mais contida que a câmera e o boom demandam. Enfim, Zé Celso, Maria Luisa Mendonça e os atores de peso que entraram no filme só tornaram o meu trabalho mais fácil.
O personagem Horácio possui um alto teor de perigo, prestes a explodir em atos de violência, e sua relação com a filha indica certa misoginia. Você concorda? Qual a origem desse comportamento violento de Horácio?
A violência do Horácio é latente, ela só explode no final. Ao longo do filme ele agride levemente como num suplício chinês, mas não precisa explodir, pois ele é o chefão, manda no seu mundo que segue as suas ordens. É a tirania que se expressa pela misoginia contra a sua filha Petula, contra Roberta e pelo domínio que exerce sobre o seu capanga Milton. Esse comportamento violento resulta da incapacidade de amar, tanto a sua filha quanto o seu capanga. Ele força as pessoas a serem o que ele deseja que eles sejam, mas progressivamente o universo de Horácio desmorona e como percebe que não consegue ser amado, se torna violento.
Gostei muito do personagem Milton (interpretado por Marcelo Drummond), que refuta as investidas de Horácio, mas decide aceitar a relação com a namorada da internet. Qual foi sua ideia, uma mensagem contra o preconceito ou que o amor está acima de tudo?
Ao aceitar o fato de que Roberta (Glamour Garcia) é uma mulher transexual, Milton não aceita somente a diversidade sexual, ele vai atrás do amor que é negado no seu mundo e rompe um ciclo de relações brutais. Ele sai do universo criminoso e desregrado onde vive e segue seu coração. O filme é sobre o mal, a ausência de valores positivos na sociedade. Não falo de valores construídos em cima de convenções que podem ser questionadas, falo de valorizar a liberdade do outro e consequentemente se tornar livre do olhar do outro e do grupo no qual estamos incluídos. Milton sente que Roberta vai amá-lo e que ele vai amá-la, por isso segue em frente. Vejo Milton como um personagem que pode mudar completamente, enquanto Horácio e Petula reproduzirão o ciclo infernal do crime.
Para finalizar, qual seu próximo projeto?
Tenho vários projetos. Um thriller político que se passaria na França, uma história mitológica contemporânea que se passa em São Paulo e um roteiro que se chama “Bárbaros”, um filme noturno que atravessa várias grupos sociais e onde o crime perpetrado por um garoto vai tendo consequências inesperadas.