O Herói (Nayak, 1966) é o mais recente dos filmes selecionados para a retrospectiva de Satyajit Ray na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Lembrando o que John Ford fez em No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939), Satyajit Ray povoa um trem, em seu filme O Herói, com personagens que representam certos tipos de pessoas dentro da sociedade daquela época e local.
O protagonista é Arindam Mukherjee, um famoso ator do cinema bengali, que viaja para Déli para receber um prêmio. A jornada o levará a uma crise de consciência, despertada pelos passageiros que ele encontra.
Em seu vagão, ele tem que lidar com um empresário que critica o cinema indiano. Este, por sua vez, é o alvo de um publicitário que usa a sua contrariada esposa como isca para atraí-lo para virar um cliente. Mukherjee conversa, também, com um velho que olha a indústria do cinema com ressalvas éticas. Além disso, Aditi, a editora de uma revista feminina, atiçada por seus amigos, tenta extrair uma declaração bombástica do ator.
Direção exemplar
Esse roteiro, composto de muitos diálogos, talvez resultasse num filme cansativo e difícil de se compreender nas mãos de um diretor qualquer. Mas o talentoso Ray evita que isso aconteça. Bebendo do cinema clássico hollywoodiano, porém acrescentando seu toque pessoal, Ray movimenta a sua câmera (apoiada em tripés ou carrinhos) sempre que a cena permite. Assim, vai além do plano e contraplano em uma conversa, aproximando o quadro até o ator que fala ou até um objeto importante para a narrativa.
E, embora a estória se passe quase que inteiramente dentro de um trem, Ray cria brechas para respiros. Por exemplo, a sequência do sonho com Mukherjee num deserto com montanhas de dinheiro, onde ele descobre cadáveres. Na verdade, se trata de uma metáfora para a consciência pesada que atormenta o ator. O flashback representa outra oportunidade de mudança de cenário. Importante para a trama, o olhar para o passado revela que, na sua obstinada escalada ao sucesso, ele traiu seu amigo ativista.
A pessoa por baixo da celebridade
Na parte final, Mukherjee recorre à bebida. O álcool desperta alguns instintos malvados, o que afugenta a criança que antes gostara dele, e perturba o passageiro idoso. Mas, por outro lado, a substância o humaniza. Suas fraquezas ficam evidentes. Desde a ajuda que precisa da mulher em seu vagão que ajeita os seus pés para cima da cama, até o depoimento sincero para a editora da revista.
O protagonista descobre que a fama e a fortuna não são tão importantes a ponto de justificar o desrespeito às suas virtudes. Para fechar essa mensagem, Satyajit Ray ainda acrescenta o desfecho do arco dramático do publicitário, que se aproveitava da beleza da própria esposa para atrair um novo cliente quando, ali mesmo no vagão, uma oportunidade muito mais óbvia se oferecia sob os trajes de um cidadão simples. Mais do que um filme sobre cinema, O Herói critica a sociedade bengalesa à qual Satyajit Ray pertencia.
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Ficha técnica:
O Herói | Nayak | 1966 | Índia | 120 min. | Direção: Satyajit Ray | Roteiro: Satyajit Ray | Elenco: Uttam Kumar, Sharmila Tagore, Bireswar Sen, Somen Bose, Nirmal Ghosh, Premangshu Bose.