Cruel ironia. No filme em que Paulo Miklos tem a chance de brilhar de forma inesquecível no cinema brasileiro, mais que em seus trabalhos de destaque do passado, caso de O Invasor (2001) e É Proibido Fumar (2009), ele enfrenta uma grande inimiga, a câmera. Era para ser sua aliada, mas a câmera de O Homem Cordial, por uma opção equivocada, a meu ver, do diretor Iberê Carvalho (do bom O Último Cine Drive In, de 2014), desfoca o entorno, aparta o protagonista do espaço que ele ocupa e enfraquece o drama ao preferir a claustrofobia e a opressão da proximidade a uma alternância mais equilibrada entre essa estética que aparenta desleixo no enquadramento e algum distanciamento crítico.
Lembro sempre do que o Carlos Reichenbach me disse a respeito de Cidade Baixa (2005), longa de Sérgio Machado. Ele queria que em algum momento a câmera filmasse a parede, para que os olhos dele descansassem. Na entrevista, publicada na Revista Paisà e republicada na Revista Interlúdio, ficou assim: “Em Cidade Baixa a câmera não respira nunca, em momento algum ela se detém em um objeto, numa porta vazia, numa janela aberta …”.
Muitos consideram que o respiro vem justamente da câmera na mão, fazendo malabarismos desajeitados no espaço, mas penso que o Carlão (como era chamado por amigos e conhecidos) estava certo. A câmera que gruda no personagem não respira e não deixa o personagem respirar. Ela olha mal, e geralmente atua contra o trabalho do ator ou da atriz. Pode funcionar, dependendo de onde se quer chegar. Nos primeiros longas de Philippe Grandrieux, por exemplo, esse tipo de câmera cai muito bem, mas isso raramente acontece.
Em O Homem Cordial, Miklos sai muito prejudicado pela opção, e seu personagem, Aurélio, líder de uma banda famosa de rock, ainda tem de enfrentar toda a sorte de fascistas e aproveitadores na noite paulistana. É uma verdadeira descida ao inferno de uma metrópole desumanizada.
Quando Aurélio se envolve com jornalistas independentes que investigam o vídeo que viralizou na internet, a maneira como é filmado o encontro com os jornalistas e a investigação do vídeo anula toda a possibilidade de riqueza no trabalho com a observação das imagens.
Entende-se que não era a opção mostrar tudo naquele momento, o que torna ainda pior a opção de mostrar tudo no final. Que deixasse o espectador na dúvida eternamente, já que se abdicou de pensar no valor de uma imagem viralizada, no que ela pode esconder e enganar.
Não há de fato uma investigação. Para o filme, não interessa muito mostrar as coisas, ou ao menos mostrá-las bem. A preferência é pelas sensações, por um certo entorpecimento, a perdição num labirinto de estímulos: um homem engolido pela noite. Como resultado, todos os confrontos resultam em cenas mal pensadas.
Muitos gostam dessa espontaneidade, que equivale a um hardcore avassalador, ou a um thrash metal dos mais violentos. Gosto dos dois tipos de música, por sinal. Tem horas, contudo, que a energia explosiva não basta, e até atrapalha.
Essa moda não passa por inteiro por causa dessa adesão de muitos críticos e cinéfilos, embora perceba uma forte reação contrária no cinema internacional. Imaginemos Paulo Miklos atuando em um estilo mais, digamos, elaborado. Não precisa ser rock progressivo ou música erudita, mas o punk trabalhado de um “Television” ou de uma “Patife Band” iria muito bem.
Em alguns momentos, prevalece a estética da nuca. Em outros, temos revelações bagunçadas, às vezes desencontradas. Que o Brasil está doente, consumido até a metade pelo câncer da extrema direita, não há dúvida. Que a polícia é mal preparada, repleta de criminosos e corruptos como em quase todos os ramos de nossa sociedade, também sabemos.
Combater esse estado de coisas deplorável exige preparo, pensamento, cuidado nas escolhas, incluindo uma preocupação estética que não seja a sujeira habitual do cinema contemporâneo de cunho social. Sujeira com sujeira, não dá pé. Uma sujeira anula a outra. E não é uma música mais solene que irá resolver. Só piora.
Assim como piora mostrar o menino negro, vítima da tentativa de linchamento, entregando comida a uma mulher branca rica (ou de classe média que se acha rica). É o momento “minha Veja veio fora do plástico”. Cineastas brasileiros não conseguem mais fazer sátira de qualidade à nossa burguesia porca. É tudo meio óbvio, piscadelas para o espectador se sentir inteligente.
Num momento em que Hollywood respira por aparelhos, os cinemas de outros lugares ainda regurgitam modismos como o cinema de fluxo ou sua radicalização: a câmera que mostra pouco, a imagem sem elaboração. Que bela resposta.
A ironia que não se perde (a do título que remete a Sérgio Buarque de Holanda acho meio boba): o membro de uma banda, Titãs, que fez uma famosa música contra a polícia, agora interpreta um músico acusado de matar um policial. Também não se perde a alegoria: grande parte do Brasil de hoje está contra a classe artística (por vezes nas kafkianas vias burocráticas).
É só isso e uma observação de um jovem jornalista pasmo: “bafo”. Não salvam o filme de uma verdadeira sabotagem contra seu ator principal.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
O Homem Cordial | 2019 | 83 min | Brasil | Direção: Iberê Carvalho | Roteiro: Pablo Stoll, Iberê Carvalho | Elenco: Paulo Miklos, Thaíde, Dandara de Morais, Thalles Cabral, Theo Werneck, Fernanda Rocha, Bruno Torres, Murilo Grossi, Mauro Shames, Felipe Kenji, Tamirys O’Hanna, André Deca.
Distribuição: O2 Play.
Leia também a crítica de O Homem Cordial por Eduardo Kaneco.