A diretora Baya Kasmi gosta de quebrar as expectativas do espectador. Assim ela afirmou na entrevista que concedeu ao Leitura Fílmica em sua visita ao Brasil para o Festival Varilux 2023. E Kasmi pratica essa proposta em seu segundo longa, O Livro da Discórdia (Youssef Salem a du succès), incluído na programação do festival.
Seu filme aponta para várias direções falsas ou quase falsas. Começa, por exemplo, numa suposta ficção-científica, numa praia contaminada que condena um casal de amantes. Mas a narração em primeira pessoa, em tom levemente jocoso, joga para longe o sci-fi, e apresenta um relato de memórias da juventude. Em seguida, a câmera que apresenta a família do narrador, não entra de frente pela janela do apartamento como o cinema costuma fazer. Ao invés disso, recua da janela para o interior do imóvel, num movimento mais acolhedor, como se o morador convidasse o público para entrar em seu lar. O narrador, então, revela que é um escritor e as frases que diz são de seu livro. Que, para surpresa geral, ele afirma não ser autobiográfico.
No desenrolar da história, que acompanha o sucesso inesperado dessa obra, há extremos de drama (a doença do pai) e também de comédia (Youssef se esquivando desajeitadamente para não revelar aos pais que se separou de sua mulher, o raio que cai perto da piscina). Com isso, o espectador não sabe o que esperar das próximas cenas. Mais que os gêneros, o filme oferece temperos diferentes, que vão desde as picantes lembranças sexuais do Youssef adolescente até momentos singelos de humor simplório.
Mentiras
Essa impossibilidade de se definir o tom do filme, que geralmente se torna um problema, aqui funciona porque está conectada à narrativa. Afinal, O Livro da Discórdia engana o espectador, e é justamente isso que o protagonista faz o tempo todo. Youssef, acima de tudo, é um mitomaníaco, mente compulsivamente até quando não precisa. Por isso, continua a manter a versão falsa sobre a autoria do livro mesmo após não correr mais o risco de machucar seu pai. Até então, esse receio exagerado explicava o motivo de ele esconder a verdade. Mas, a partir de certo ponto, essa justificativa não cabe mais.
E o receio era desnecessário. O pai, um especialista em literatura, entende que o escritor se vale de suas experiências pessoais para criar sua obra. E até mesmo o rapaz famoso do reality show (um programa que lida com o limite da verdade) enxerga no livro de Youssef pontos em comum com sua própria criação. Do particular, o livro alcança o universal. Mas as mentiras vendam os olhos de Youssef para todas as verdades. Já a diretora Baya Kasmi joga com a mentira para conduzir o espectador a falsas expectativas sobre o que está para ver nas próximas cenas. Dessa forma, faz da experiência de assistir ao filme uma jornada provocante.
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Ficha técnica:
O Livro da Discórdia | Youssef Salem a du succès | 2023 | 97 min. | Direção: Baya Kasmi | Roteiro: Baya Kasmi, Michel Leclerc | Elenco: Ramzy Bedia, Noémie Lvovsky, Abbes Zahmani, Tassadit Mandi, Vimala Pons, Lyès Salem, Melha Bedia, Caroline Guiela Nguyen, Oussama Kheddam, Chryssa Florou, Michel Leclerc.
Distribuição: Bonfilm.
Veja o trailer aqui.
Assista à nossa entrevista com a diretora do filme, Baya Kasmi: