“No sudoeste americano em 1880 a diferença entre a morte e a glória não era maior que uma fração de segundo”. Essa é a primeira frase do texto que abre O Matador (The Gunfighter, 1950), do brilhante Henry King, enquanto vemos Jimmy Ringo (Gregory Peck) cavalgando sem rumo, sozinho em meio a vastidão do deserto.
Entre o discurso e a verdade
O tema do filme já aparece discreto, a batalha entre o discurso e a verdade da imagem. A suposta “glória do matador” é posta em cheque aqui, numa desconstrução de mitos do faroeste que já começara com longas como Sangue de Heróis (Fort Apache, 1948), e que culminaria em O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), citando apenas os filmes de John Ford, por serem mais didáticos e conhecidos.
Ainda na primeira cena, depois de vermos o cavaleiro solitário – figura que ficaria marcada pelo personagem de John Wayne em Rastros de Ódio (The Searchers, 1956) – temos um momento muito simples, mas que é válido ser destacado.
Ringo para em frente a um saloon que fica alto em relação ao chão (Fig.1), e sobe as escadas para entrar (Fig.2). Antes de passar pela clássica “porta bang bang”, o diretor filma em um plano americano (Fig.3), mas assim que vemos o protagonista dentro do saloon, O Matador que dá título ao filme é filmado em um plano bem aberto, com uma notória profundidade de campo (Fig. 4 e 5).
Encenação
Minha interpretação para a cena é de que estamos diante de um grande teatro, e a subida das escadas representa essa subida ao palco. Ficamos diante dessa espécie de encenação consciente onde o “matador” já sabe que terá que fazer jus ao seu título – a diferença, porém, é que o personagem de Peck não aguenta mais esse mundo de aparências.
E a cena se desenvolve ao ponto de o pistoleiro precisar provar que é de fato tão veloz quanto dizem a partir de uma incessante intimação ao duelo, por um imaturo menino que sente que tem algo a provar. Ringo mata o jovem, e precisa sair da cidade. Então, a grande batalha do filme em poucos minutos de rodagem: entre o teatro e a verdade, entre o homem e o mito, entre a glória (mencionada no texto inicial) e a maldição.
Uma recusa ao mito
Henry King traz à tona uma recusa ao mito, antagonizando com todas as estruturas que o reforçam (a memória que persegue e solidifica a lenda, que é só sombra do interesse causado por ela, pro bem e pro mal) gerando um sujeito famoso por injunção, um homem pesaroso – foi muito difícil achar um adjetivo, e ainda não sei se esse é eloquente o suficiente.
King nunca busca uma representação heroica do matador, uma celebração oca das habilidades de um pistoleiro, mas justamente as resistências do personagem em relação à persona, o homem por trás do mito. E no fim, o que fica é a movimentação perfeita (dos atores, da câmera, da consciência, da transferência do peso fúnebre que um pistoleiro carrega – da energia magnetizada pela presença de Peck na tela).
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
O Matador | The Gunfighter | 1950 | 85 min | EUA | Direção: Henry King | Roteiro: William Bowers, William Sellers | Elenco: Gregory Peck, Helen Westcott, Millard Mitchell, Jean Parker, Karl Malden, Skip Homeier, Anthony Ross, Verna Felton, Ellen Corby, Richard Jaeckel.