Todos se lembram de Charles Laughton como o consagrado ator, vencedor do Oscar por Os Amores de Henrique VIII (The Private Life of Henry VIII, 1933). Porém, ele também foi diretor. Na verdade, apenas uma vez, em 1955, quando realizou O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter). A prévia experiência como diretor de teatro na Broadway o preparou para essa função, mas esse ousado filme fracassou no lançamento. Nem o público nem a crítica gostaram. Então, nunca mais dirigiu outro filme, vindo a falecer em 1962.
É compreensível a má recepção do ousado O Mensageiro do Diabo. Se você não captar a proposta do filme, provavelmente o achará fantasioso, falso, e com uma interpretação exagerada de Robert Mitchum. Mas, quem descobre nele “um hipnótico conto-de-fadas para adultos”, como escreveu Burkhard Röwekamp1, se deslumbra com uma obra única, que ganhou apreciação posteriormente, e hoje marca presença em muitas listas de melhores filmes de todos os tempos. Deve ser visto como uma fábula, pois só assim nos maravilhamos com a atuação genial de Mitchum, com trejeitos que remetem a desenho animado, e a fotografia assombrosa de Stanley Cortez. E, até mesmo as falhas dos atores mirins se transformam em um dos charmes do filme, adicionando estranheza onde já havia muita. O menino Billy Chapin muitas vezes olha para o lugar errado, e a menina Sally Jane Bruce, simplesmente não sabe atuar. Mas, é inesquecível a maneira esquisita como ela diz “It´s in the doll! It’s in the doll!” (“Está na boneca! Está na boneca!”).
Conto-de-fadas para adultos
O Mensageiro do Diabo já começa com uma introdução própria de conto-de-fadas. Quem aparece na tela é a pioneira atriz Lillian Gish, que na parte final surge no papel de uma personagem importante. E, ela fala para crianças aleatórias, das quais vemos apenas o rosto, em círculos como as estrelas que compõem o fundo da tela. Após certo escrutínio, dá para identificar que as duas crianças das pontas atuam no filme. Contudo, o que essa senhora conta não é uma fábula, mas partes da Bíblia. Já introduz, assim, o fanatismo exagerado que arrebatou os Estados Unidos na época da Depressão, quando se desenrola a história. Mas, ela alerta para “os falsos profetas, os lobos em pele de ovelha”.
Só então, começa o filme, cortando direto para uma tomada aérea (visão de Deus?), que desce até vermos uma criança inesperadamente se deparar com um cadáver enquanto brinca com os amigos. Então, conhecemos o autor do crime, o falso pastor Harry Powell (Mitchum), cinicamente falando com Deus, vangloriando-se de já ter matado doze viúvas. Na mão esquerda, está tatuada a palavra “ódio”, na direita, “amor”. Uma entrada poderosa, que já revela todo o mal contido nesse ser.
A polícia prende Powell, mas não pelos assassinatos, e sim pelo roubo de um carro. Como ele mesmo provoca, por que Deus é tão benevolente com ele? Pois, na breve passagem pela cadeia, ele conhece Ben Harper (Peter Graves), que matou duas pessoas e roubou 10 mil dólares para salvar sua família da penúria. Harper recebe pena de morte, mas, antes de ele morrer, Powell descobre que ele escondeu o dinheiro roubado. E, parte, então, atrás da viúva Willa (Shelley Winters) e de seus dois filhos pequenos, John e Pearl.
O caçador se aproxima
A música retumbante, composta por Walter Schumann, evidencia a aproximação do serial killer em roupas de pastor. O trem em alta velocidade cruza a tela, representando a ameaça que chega, como fez Alfred Hitchcock em À Sombra de uma Dúvida (Shadow of a Doubt, 1943), que também trata de um assassino de viúvas. E, por falar em sombra, é assim que as crianças têm a primeira visão de Harper, cuja silhueta se projeta pela janela do quarto.
Por causa da Depressão, todos parecem muito suscetíveis à religiosidade. Assim, logo Willa, empurrada pela amiga, se deixa seduzir por Powell. Afinal, não poderia deixar escapar um homem bonito, solteiro, e, ainda mais, pastor. No entanto, Powell está lá só para encontrar o dinheiro roubado por Harper. Ele odeia mulheres, e usa o pretexto da religião para evitar o sexo na noite de núpcias com Willa. A cegueira da ex-viúva pela religiosidade ganha uma representação inesperada no plano do quarto do casal. Duas linhas verticais se juntam no teto, como se fosse numa igreja, quando Powell a mata friamente. Mas, mais impactante ainda é a cena em que vemos Willa morta submersa dentro rio, amarrada ao seu carro, com os cabelos ondulando com o movimento da água, junto com as plantas aquáticas. É arrepiante, seja pelo ponto de vista exclusivo do espectador (de dentro da água) ou pela perspectiva do velho pescador (de cima da água).
Elementos de fábulas
Os trechos mais próximos visualmente aos contos-de-fadas surgem daí para frente. Primeiro, no porão, quando Powell descobre que o dinheiro está escondido na boneca de Pearl (“It´s in the doll!”), brinquedo que estava todo o tempo por perto. Mitchum sobe as escadas na penumbra, atrás das crianças, igual a um lobo mal de um desenho animado, com os braços estendidos para frente. Esse efeito se repete quando o ator lamenta que John e Pearl fogem num barco, e quando ele recebe um tiro perto do final, e sai gritando de dor. O trajeto da fuga pelo rio remete às fabulas pelos vários bichos da natureza que surgem na margem, começando por um sapo. A conexão fica ainda mais forte com a canção infantil cantada pela menina. Destaca-se, também, a bela metáfora da teia de aranha em primeiro plano, e o barco deslizando pelo rio, escapando do seu algoz.
Fantasia cínica
O roteiro de James Agee, adaptado do livro de Davis Grubb, possui uma não tão velada crítica às mulheres que se deixam enganar facilmente, seja pela religião ou pelos homens. Prova disso é a amiga idosa de Willa, e a própria Willa também, que de pronto ficam encantadas pelo pastor forasteiro. Já o marido da amiga é mais cético. A personagem de Lillian Gish, Rachel Cooper, é a exceção. Inclusive, ela recolhe e cuida de crianças que foram abandonadas pelas suas mães solteiras. Ademais, a pequena Pearl e a adolescente sob os cuidados de Rachel permanecem encantadas por Powell até o fim. “Mulheres são tolas, se deixam enganar pelos homens.”, afirma Rachel. Esta personagem representa a mulher forte, responsável aqui até pela prisão do assassino.
O Mensageiro do Diabo se alonga um pouco demais. Poderia terminar quando Powell é preso, mas continua por mais seis minutos desnecessários. Esse epílogo mostra a tentativa de linchamento de Powell e uma reverência às crianças, situações que nem funcionam tão bem.
Um filme inventivo, uma fábula de terror. Nunca nos esqueceremos das imagens marcantes, do clima de fantasia cínica de O Mensageiro do Diabo.
1 Em “Film Noir”, Duncan, Paul & Jürgen Müller (editores), Ed. Taschen/Bibliotheca Universalis, 2017, pág.545.
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Ficha técnica:
O Mensageiro do Diabo | The Night of the Hunter | 1955 | EUA | 92 min | Direção: Charles Laughton | Roteiro: James Agee, Charles Laughton | Elenco: Robert Mitchum, Shelley Winters, Lillian Gish, James Gleason, Evelyn Varden, Peter Graves, Don Beddoe, Billy Chapin, Sally Jane Bruce, Gloria Castillo, Corey Allen.