Nesta fase de sua carreira, de algum modo Abel Ferrara repete os filmes italianos para exportação, feitos nos anos 1960 e 70, mas com um tom mais solene e sério. Seu novo filme, Padre Pio, conta a história do religioso italiano Francesco Forgione (1887-1968), interpretado por Shia LaBeouf (ator que tornou pública sua suposta conversão ao catolicismo durante as filmagens), padre canonizado pelo Papa João Paulo II em 2002, desde o final da Primeira Guerra Mundial até os acontecimentos trágicos de 1920 em sua comunidade, San Giovanni de Rotondo.
Na Itália, Padre Pio está no meio de uma disputa entre os fascistas que oprimiam a região e que, como sempre, representam a elite financeira com sangue de inocentes nas mãos, e os idealistas que pretendem instalar o socialismo, alguns de modo gradual, outros com revolução (o que seria o sangue justo do opressor, segundo suas crenças).
A questão é saber como o protagonista derrotará seus próprios demônios para poder lutar contra os demônios da sociedade. No embate entre necessidade individual e necessidade coletiva brota a consciência de que um mundo sem guerra continua sendo um mundo de injustiça e violência. O padre tem essa consciência, mas pouco consegue fazer com ela, por enquanto.
Inglês macarrônico
Alguns devem reclamar do inglês macarrônico, não entendendo que esse é um dado importante de um certo tipo de cinema feito no país, conforme mencionei no início do texto. E o pior não é o inglês macarrônico, que parece sugerir uma homenagem àqueles tempos, mas o inglês como língua falada em todos os cantos do planeta. Como o filme, presumivelmente, só passará em italiano na própria Itália, temos um produto de exportação chique, com blues na trilha sonora e um ator americano como protagonista, mas com inglês macarrônico para quebrar.
É muito maior o incômodo com alguns diálogos que parecem saídos de manual de calouro universitário, com palavras de efeito e slogans proferidos sem qualquer vergonha, ou ainda máximas do anticomunismo que parecem as de hoje, saídas de quem nunca leu sequer um livro de História. Podem argumentar que esse é o nível da discussão entre comunistas e anticomunistas. Então para que mais um filme mostrando esse nível de discussão quando Ferrara parece mais interessado e empenhado nas provações do padre?
Espiritualidade
Um tripé de vez em quando também faria bem, por mais que a câmera na mão dos filmes de Ferrara seja muito acima da média do cinema contemporâneo. Na ausência improvável de um tripé, poderiam apoiá-la numa pedra, numa mureta ou em qualquer outra superfície sólida (ombros firmes também serviriam).
O cerne do filme, contudo, diz respeito à espiritualidade. Padre Pio sabe que precisa agir para evitar mais violência, mas o filme o deixa apartado do conflito político até o fim. Ou seja, são dois filmes em um: o do padre e suas tentações, que me parece bem-sucedido apesar de exagerar na sujeira estética, e o do conflito político na pequena aldeia, que sugere um Ferrara apático.
O filme é dedicado às vítimas do massacre de San Giovanni Rotondo e ao povo da Ucrânia. Com isso Ferrara compara os dois acontecimentos separados por pouco mais de um século.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Padre Pio | 2022 | 104 min | Alemanha, Itália, Reino Unido, EUA | Direção: Abel Ferrara | Roteiro: Abel Ferrara, Maurizio Braucci | Elenco: Shia LaBeouf, Cristina Chiriac, Marco Leonardi, Salvatore Ruocco, Asia Argento, Vincenzo Crea, Luca Lionello, Branco Pacitto, Stella Mastrantonio.