De grande importância para o cinema brasileiro, a cineasta Ana Carolina explora o “ontem como hoje” em seu longa mais recente, Paixões Recorrentes. Isto quer dizer que ela usa o velho estratagema de situar sua obra num passado determinado para falar, na verdade, do presente. Mais especificamente, do presente brasileiro, apesar da convergência de nacionalidades mostrada pelos personagens.
Essa é uma operação delicada, pois para evitar o risco de perder o espectador na analogia, corre-se outro risco, mais grave: o de andar nas obviedades. Esse é o maior problema deste filme: a partir de um tempo, as coisas chegam a ficar cômicas de tão óbvias, chegando ao extremo em uma conversa muito explicativa com três personagens encostados em uma mureta.
Um bar numa ilha deserta
Os personagens são definidos arquetipicamente. Parece que todos estavam no mesmo barco, o que remete às frases feitas dos que não gostam de discussões políticas e às próprias frases feitas recorrentes nos filmes anteriores da cineasta. Eles vão parar numa ilha que no momento está deserta. Discutem a situação do mundo num bar (um bar, com bebidas atrás do balcão, em uma ilha deserta é uma das boas ideias que o filme traz). O tempo é 1939, no exato dia em que é declarada a Segunda Guerra Mundial, então uma guerra europeia.
Temos um jovem português salazarista que desce do barco à procura de sua antiga namorada. Temos o dono do bar, um tipo pragmático que venderia até a mãe para ganhar um dinheiro e se diz integralista. E temos a atriz francesa e seu empresário ladrão, o argentino que controla a presença das pessoas na ilha, talvez para fazer com que ela continue deserta. Por último, a namorada fugitiva e o rapaz pelo qual ela se apaixonou. Esse último casal forma a parte mais à esquerda no espectro ideológico, ainda que todos tenham lá seus momentos de dúvida (outro acerto do filme, e um acerto que chega a diminuir um pouco o problema da obviedade).
Ana Carolina e Manoel de Oliveira
Em dois aspectos Paixões Recorrentes remete ao cinema de Manoel de Oliveira: no “ontem como hoje”, pois essa é uma operação que Oliveira sempre realizou evitando a obviedade, a não ser no título de um de seus belíssimos filmes históricos, O Quinto Império – Ontem como Hoje (2004).
O segundo aspecto remete a Um Filme Falado (2003) e sua sinfonia de línguas diferentes. Se no filme de Oliveira, contudo, todos se entendem perfeitamente, no de Ana Carolina há alguns ruídos, o que não significa, nesse caso específico, um defeito. É apenas a opção da diretora. O filme de Oliveira, aliás, tem uma reiteração atípica em sua obra, quando o personagem de John Malkovich chama a atenção para a comunicação babélica. Nesse aspecto, ao menos, Paixões Recorrentes ganha interesse.
Se o filme se apresenta como uma obra digna no final das contas é justamente pela qualidade da direção de Ana Carolina, com seus movimentos de câmera precisos, sobretudo os que iniciam o filme (a câmera em volta do barco), e uma atenção especial ao ritmo. Se no auge da obviedade o filme ameaça cansar, a beleza das imagens e o olhar apurado da cineasta para os enquadramentos se encarregam de garantir sua pulsação.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Paixões Recorrentes | 2022 | Brasil | 100 min | Direção e roteiro: Ana Carolina | Elenco: Thérèse Cremieux, Luciano Cáceres, Pedro Barreiro, Danilo Grangheia.
Distribuição: O2 Play.