O filme Rainha de Copas desafia o julgamento do espectador.
O caminho mais óbvio, ao assistir ao terceiro longa-metragem da diretora May el-Toukhy, de No Final das Contas, leva à vilanização da personagem principal. Afinal, é o que instiga a estória. A princípio, Anne é casada com Peter, com quem tem duas filhas gêmeas ainda crianças. Quando o marido precisa acolher Gustav, o filho de 17 anos dele com outra mulher, Anne seduz o rapaz e tem com ele um caso tórrido.
Contudo, essa condenação a partir de um viés moralista e conservador significa um meio demasiadamente simplista. Isso porque a personagem é construída como uma pessoa verdadeiramente humana, com os defeitos e virtudes inerentes a todos. Essa condição se traduz em uma multitude de facetas, longe de um simplório preto e branco.
Anne
Inicialmente, o interesse de Anne no rapaz, sem ainda revelar intenções sexuais, acarreta numa melhora no seu comportamento. Ele precisou se mudar para a casa do pai porque a escola em que estudava no país vizinho o expulsou. Ao se transferir para uma escola no país onde o pai mora, ele consegue a chance de concluir o ensino fundamental. Portanto, ele se muda a contragosto, para conviver com um pai que ele pouco conhece. Isso explica a atitude rebelde dele.
O afeto da madrasta desperta uma mudança no comportamento do rapaz. E isso se mantém até mesmo depois que ele é surpreendido por uma investida sexual de Anne. Essa cena inclui um trecho explícito que provoca no espectador uma sensação de espanto equivalente à que o personagem Gustav sentiu.
Mergulho profundo
Rainha de Copas não fica apenas na superficialidade desse relacionamento secreto. Mergulha mais fundo e revela outras camadas da protagonista que perturbam o espectador em novas situações. Diante do risco de estragar o seu casamento com a revelação do caso, Anne decide terminá-lo, o que é difícil para o rapaz aceitar, já tomado de volúpia por ela.
Choque maior o público experimenta quando ela desmente a traição na frente do rapaz, ao ser questionada pelo marido. Acusado de inventar essa história, o filho é expulso da casa pelo pai, e nem isso sensibiliza Anne.
Atmosfera fria
Sob outro aspecto, o filme apresenta uma atmosfera fria, através das cores usadas em sua fotografia clara, do cenário interior imaculado, e da sua trilha sonora. Essa frieza se conecta com a personagem principal, que age de forma racional para satisfazer seus desejos ao mesmo tempo que protege o que tem. Esse gelo não se refere ao seu fogo sexual. Várias cenas mostram Anne procurando o marido para transar, e não apenas sucumbindo à tentação de ter o enteado sob o mesmo teto.
Adicionalmente, há um interessante paradoxo entre o comportamento de Anne e sua profissão. Afinal, ela é uma respeitada advogada que defende mulheres vítimas de homens que as abusaram física ou sexualmente. Mas, na vida pessoal, ela pratica com o jovem enteado o que ela combate nos autos.
Mas, antes de conduzir o público à condenação de Anne, o filme relembra que ela é humana. Anne não foi corajosa o suficiente para admitir o caso para seu marido e, assim, sofrer a consequência de um possível divórcio. Porém, ela precisa encarar um resultado trágico decorrente de seus atos. E a conclusão deixa evidente que o arrependimento pesará sobre ela, perturbando a sua relação com o marido.
Por fim, Rainha de Copas apresenta um personagem complexo para um público disposto a encarar uma trama sem respostas simples que demanda sua maturidade.
Ficha técnica:
Rainha de Copas (Dronningen) 2019, Dinamarca/Suécia, 127 min. Direção: May el-Toukhy. Roteiro: Maren Louise Käehne e May el-Toukhy. Elenco: Trine Dyrholm, Gustav Lindh, Magnus Kreppe, Liv Esmår Dannemann, Silja Esmår Dannemann, Stine Gyldenkerne, Preben Kristensen, Frederikke Dahl Hansen, Ella Solgaard, Carla Philip Røder.
Distribuição: Arteplex.