Baseado no livro de David Foenkinos, O Mistério de Henri Pick é uma comédia franco-belga que chegará em breve nos cinema nacionais distribuído pela A2 Filmes.
O filme conta a investigação de um crítico literário para descobrir a autenticidade da autoria de um best-seller publicado a partir de um manuscrito escrito por Henri Pick, um fabricante de pizza bretão que morreu dois anos antes.
Confira a entrevista disponibilizada pela distribuidora com o diretor Rémi Bezançon e Vanessa Portal, com quem escreveu o roteiro.
Esta é a segunda vez que você adapta um romance. Por quê esse, em particular?
RÉMI BEZANÇON – O princípio da investigação literária me interessou, uma espécie de híbrido bastante inesperada. E, depois de quatro filmes bastante introspectivos, cheguei ao final de um ciclo, eu queria mudar de universo. Assim que escolhi o livro de David Foenkinos, o li para Vanessa, com quem escrevo meus roteiros.
VANESSA PORTAL – Imediatamente, gostei desta ideia muito visual de biblioteca de livros recusados, este refúgio para manuscritos cujos editores não queriam, homenagem a Richard Brautigan, um autor que amo.
Qual perspectiva você escolheu para a adaptação?
BEZANÇON – Se tivéssemos adaptado o livro como era oirignalmente, com seus muitos protagonistas, teria dado um filme “coral”, com muitas vozes ao mesmo tempo. Preferimos nos concentrar em um dos personagens, o do crítico literário Jean-Michel Rouche, interpretado por Fabrice Luchini, que no livro só aparece na metade da história. Queríamos torná-lo o personagem principal e é ele quem lidera a investigação. É uma variação da mesma história, outro ponto de vista.
VANESSA – Uma das fontes cômicas do filme é que este personagem não é um investigador profissional. O que o leva a estar mais íntimo, é mais pessoal. Ele suspeita de todos e, para apoiar suas suspeitas, ele inventa vários motivos.
BEZANÇON – Sim, ele conta estórias constantemente, essa farsa literária faz galopar sua imaginação. É uma forma de ‘mise en abîme’ da ficção.
Quais os maiores desafios do projeto?
VANESSA – Principalmente a investigação. Os mecanismos de suspense são complexos de entender. Mas brincar com os códigos dos extremos parecia ainda mais cômico. É um ‘quem é o culpado?’, em que você não procura ‘quem matou’, mas ‘quem escreveu?’.
BEZANÇON – No início, a investigação foi um ‘MacGuffin’, o mistério inicial para nós, como em Hitchcock ou, como em “Um Misterioso Assassinato em Manhattan”, de Woody Allen. O mistério foi apenas um pretexto para desenvolver nossa dupla de detetives. Ainda mais exultantes, pois são amadores perfeitos que passam o tempo se contradizendo. Um ‘MacGuffin’ normalmente não representa nada, não tem valor simbólico. Mas, no filme, o ponto de partida é um livro …
BEZANÇON – Sim, é verdade, um livro é um objeto mais significativo do que um microfilme ou uma mala de dinheiro. Permitiu-nos evocar diretamente nosso tema principal, a fronteira inconstante entre ficção e realidade.
VANESSA – O que importava para nós também era a relação dos personagens com o livro, de que maneira uma ficção pode se infiltrar no real e mudar o curso das coisas. No romance de Henri Pick, as últimas horas de uma história de amor, a separação de dois casais cria um terceiro e acaba ajudando uma viúva inconsolável a superar sua dor.
BEZANÇON – Meu principal desafio, finalmente, foi encenar um paradoxo: todos corremos atrás da verdade, mas sobrevivemos graças às ilusões que criamos. O filme, ironicamente, destaca a importância da promoção no decorrer da produção de um livro.
BEZANÇON – A história de um livro não é suficiente, também é necessário contar uma história ao redor do livro, “o romance do romance”, como Rouche diz, contar histórias.
VANESSA – Podemos nos divertir, como fazemos no filme, imaginando que uma editora como Albin Michel decide publicar um escritor que foi recusado 32 vezes só por estar fora de moda. Nós também podemos nos preocupar com isso. Quando as leis de marketing interferem na seleção de textos, o risco de padronização e deterioração qualitativa se torna real.
Quando foi colocado um rosto no personagem principal?
BEZANÇON – Ao ler o livro, eu já estava visualizando Fabrice Luchini neste papel.
VANESSA – O roteiro foi enviado para ele e ele respondeu em menos de uma semana. Ficamos tão felizes que escrevemos com sua foto em cima da mesa.
BEZANÇON – Então nos conhecemos, conversamos e rimos muito também.
E para o personagem de Josephine, que é interpretado por Camille Cottin?
BEZANÇON – Fabrice teve a oportunidade de atuar ao lado de Camille na série “Dix pour cent”, em que ela é a protagonista, e adorou a experiência. Acontece que, da minha parte, eu a havia dirigido no meu filme anterior, “Nosso Futuro”, em 2015. Nós três queríamos trabalhar juntos novamente. Essa escolha foi, portanto, óbvia.
Como foi com o resto do elenco?
BEZANÇON – Para o papel da editora júnior, Daphne Despero, eu estava procurando por uma atriz que pudesse interpretar a inocência e o mistério. Alice Isaaz tem esse lado da loira de Hitchcock, enigmático, provocador. Quanto a Bastien Bouillon, ele fundiu-se com grande inteligência no papel de seu companheiro, jovem escritor maissolto. Para os outros personagens, a minha escolha foi direcionada para os comediantes que vieram do teatro: Josiane Stoléru, Vincent Winterhalter, Florence Muller, o comediante Marc Fraize. E tive o imenso privilégio de Hanna Schygulla, a musa de Fassbinder, aceitar fazer uma participação. Finalmente, para todos os personagens de Crozon, conheci atores bretões que deram muita autenticidade às cenas filmadas em Finisterra. A península de Crozon é um lugar sublime, um personagem em si mesmo no filme como cenário. Como diz Jean-Michel Rouche: “Sentimos a força dos elementos”.
Esta é a sua primeira colaboração com Fabrice Luchini, como foi a preparação para isso?
BEZANÇON – Durante os três meses que antecederam as filmagens, ele me telefonou todos os dias: “Você tem cinco minutos?” – e ele já começava: “Sequência 48…”. Ele estava interpretando pelo telefone, vivendo todos os papéis. Em qualquer caso, o centro nervoso é a preparação. Com a minha equipe, sempre usamos um storyboard e ‘moodboards’, nos quais agrupamos nossas intenções, nossas inspirações, o que nos permite harmonizar bem uniformemente nossa visão do filme. Uma vez que o aspecto técnico é definido, fico mais livre para focar na direção dos atores.
O que era esperado dos atores?
BEZANÇON – Ritmo. É fundamental na comédia. A única indicação que Billy Wilder dava a seus atores era: “Mais rápido”! Camille e Fabrice criaram um dueto muito sinérgico. Sem cair no exagero. Eu acho que um jogo de atuação em cena bem delimitado dá ao espectador o espaço para sentir suas próprias emoções. O papel de Jean-Michel Rouche, este homem de letras apaixonado, sendo bastante próximo de Fabrice Luchini, torna essa reserva ainda mais necessária. Deixar espaço para seus parceiros é mais do que elegante, é inteligente. Camille também favorecia a sobriedade confiando em ouvir e olhar. Ela tem a capacidade de modular sua atuação por instinto e pode passar da comédia ao drama com facilidade excepcional.
Há espaço para improviso nos seus filmes?
BEZANÇON – Sim, claro! Desde que não altere a psicologia dos personagens ou seu arco narrativo. O roteiro é uma base que eu preciso para me localizar na edição, mas, se eu puder ter mais sucesso, tanto melhor. Quando, durante o programa literário, Fabrice chama um convidado de “etnólogo do erotismo”, as palavras são dele. A variação de Marguerite Duras também. É uma chance de trabalhar com atores que gostam de criar incidentalmente ou brincar com o ambiente. Durante a cena no jardim de Josephine Pick, o bólido de bode que foi ouvido não estava planejado. Espontaneamente, Fabrice acrescentou uma resposta sobre isso, ele se dirigiu a Camille, com o olhar preocupado do parisiense perdido no campo, a seguinte pergunta: “Você tem uma cabra?”. Bem, o problema é que todos riram tanto que não conseguimos manter a gravação. Nós tivemos que refazer. E quando Juan, meu primeiro assistente, imitou o bode para ressuscitar Fabrice, Camille teve a ideia de responder: “Não, é Juan, o bode do vizinho!”
Houve alguma referência aos protagonistas para a criação da dupla?
BEZANÇON – Pouco antes do início das filmagens, Fabrice me deu o livro “Bonne Chance” de Sacha Guitry. Ele tinha entendido perfeitamente o tom das cenas que iriam envolver Camille e ele. Sua alquimia foi imediata, o que oferece uma base valiosa para o trabalho deles.
Como no filme, existe um livro que mudou a vida de vocês?
VALERIE – “Le Ble em Herbe”, de Colette. Meu amigo de infância emprestou para mim. Este é o primeiro romance que eu li, além de livros de juventude ou quadrinhos. Eu mergulhei na literatura assim, com toda a obra de Colette.
BEZANÇON – “As Contemplações”, de Victor Hugo. Esta coleção de poemas épicos me fez sonhar, indo longe na imaginação, Victor Hugo desenvolveu a minha. Dele vem meu gosto por palavras. Seu povo é poderoso e justo.
Como você gostaria que o público saísse da sala de exibição?
BEZANÇON – Com a sensação de ter sentido prazer.
VALERIE – E o desejo de ler um bom livro, fora do sol.