“Silêncio” expõe o rosebud de Martin Scorsese
Martin Scorsese conta que, se não tivesse se tornado diretor de cinema, seria um padre ou um gangster. O catolicismo era muito forte em sua família e ele chegou até ser seminarista, mas acabou abandonando a carreira religiosa. Possui autenticidade, portanto, para realizar seu segundo filme sobre o tema, depois do polêmico “A Última Tentação de Cristo” (The Last Temptation of Christ, 1988). Novamente, com abordagem personalíssima.
“Silêncio” conta a pouco divulgada história dos padres jesuítas no Japão da metade do século 17, que encontraram um povo em estágio muito mais avançado do que os índios na América e na África, o que frustrou a tentativa de colonização. O próprio Pedro Álvares Cabral é citado como um invasor que errou por forçar sua cultura portuguesa sobre a local. Enquanto alguns japoneses aprenderam o português para uma aproximação, Cabral não mostrou interesse recíproco. Então, os jesuítas que chegaram após o colonizador se depararam com muita hostilidade. O padre Ferreira (Liam Neeson) abre o filme em uma cena na qual os cristãos japoneses são cruelmente torturados em água fervente. O resgate desse religioso será a missão de seus discípulos Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver).
Conflito interno
Os dois jovens padres encontram no Japão alguns grupos de resistentes cristãos que escondem sua religião e vivem em pequenos povoados. A Inquisição japonesa, porém, vigiava de perto e os suspeitos só se salvavam da tortura ou morte se provassem que não eram católicos pisando ou cuspindo em imagens sacras. Rodrigues e Garupe se separam para levarem a religião a grupos distintos. O filme acompanha a trajetória de Rodrigues, posteriormente capturado pelos inquisidores e forçado a testemunhar o sofrimento dos católicos, a menos que se decidisse a apostatar (abandonar sua religião). O padre por isso enfrenta o conflito interno entre salvar as pessoas ou renegar seu deus.
Apesar da obra evidentemente pessoal, Scorsese deixa de lado os maneirismos para comunicar através das imagens, o que faz todo sentido em um filme que leva a palavra “silêncio” no título. O Japão representava um território desconhecido para os portugueses, e por isso os padres desembarcam em meio a muita névoa quando chegam ao local. As cenas filmadas nas cavernas, de dentro para fora, evidenciam a missão dos jesuítas de levarem a iluminação aos povos bárbaros de outras terras distantes.
A angústia de Rodrigues o leva a se sentir como Jesus em seu calvário. Na cena em que ele vê seu reflexo na água do riacho, a imagem de Cristo se sobrepõe à sua. A princípio, ele se nega a apostatar, porém o padre Ferreira o convence que quem realmente sofre com seu sacrifício são os fiéis japoneses capturados pela Inquisição, culminando no momento da decisão crucial de Rodrigues, filmada em slow motion e completo silêncio. O verbete do título se refere à ausência de uma reposta por parte de deus às súplicas do jovem padre.
Diálogo
Curiosamente, entretanto, uma das sequências mais interessantes consiste não no silêncio, mas no diálogo onde o inquisidor Inoue (Issei Ogata) argumenta com Rodrigues sobre a missão dos jesuítas, a partir da comparação do Japão com um homem e suas concubinas. Para os momentos altamente dramáticos, Scorsese prefere usar um fade out ou uma lua coberta pela neblina, a fim de garantir pausa para o espectador absorver o que acaba de ver na tela.
O filme, porém, não deixa o personagem principal envolver o espectador. Por isso, este tende a questionar se a obstinação do padre é válida, diante do sofrimento dos outros, e até mesmo se sua atitude não é egoísta. O retrato dos japoneses como protetores de sua cultura e nação não os transforma em vilões, tanto que o intérprete revela que eles torcem para que os católicos reneguem logo sua religião para não sofrerem.
“Silêncio” se aproxima da vida pessoal de Scorsese porque o diretor desistiu de se tornar padre para seguir outra carreira. Porém, no momento final, quando ele finalmente libera um movimento maneirista da câmera entrando na urna do padre, Scorsese grita que sua fé não se perdeu por causa dessa opção. Assim como Rodrigues, a religiosidade continua presente ainda que internamente. O pequeno amuleto nas suas mãos representa para o padre o que o filme “Silêncio” significa para Martin Scorsese. O rosebud de “Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1941) ressurge nas telas.
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Ficha técnica:
Silêncio (Silence, 2016) 161 min. Dir: Martin Scorsese. Rot: Jay Cocks & Martin Scorsese. Com Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Tadanobu Asano, Ciarán Hinds, Issei Ogata, Shin’ya Tsukamoto, Yoshi Oida, Diego Calderón, Shi Liang, Michié, Asuka Kurosawa.
Assista: entrevista com Martin Scorsese sobre “Silêncio”
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