Solidão (Lonesome, 1928) é um tesouro esquecido da era muda do cinema. “Esquecido” talvez tenha tom de hipérbole se pensarmos que o longa dirigido pelo cineasta Pál Fejös foi selecionado para preservação no Registro Nacional de Filmes dos Estados Unidos em 2010, e em 2012 teve um relançamento em DVD e Blu-ray pela Criterion Collection – talvez principal razão do seu ressurgimento entre os cinéfilos de fome pantagruélica. Fato é que o filme part-talkie da Universal traz diversas inovações técnicas, mas apesar disso (explicarei o “apesar” no decorrer da crítica) é uma obra a ser descoberta.
Sinfonia da cidade (?)
Se as sinfonias citadinas têm a cidade como principal protagonista (talvez único protagonista) tratar Solidão como algo do gênero me parece gritantemente errado. Existe essa sensação da cidade como grande máquina, bem como momentos de semelhança estética aos filmes do tipo (as incríveis sobreposições e montagem que remete à quantidade e velocidade dos estímulos visuais e sonoros), porém o longa articula essa grande metrópole mais como criadora de ansiedades (no mínimo como controladora da vida cotidiana) do que de grande celebração da vida moderna.
Na minha opinião, o filme funciona mais como um drama urbano, fortemente ligado à ambientação da cidade e seus reflexos no âmago dos personagens. Parece que nesse filme Pál Fejös está mais para Johnnie To e Luís Sérgio Person do que para Dziga Vertov e Walter Ruttmann.
O amor na cidade grande
A improbabilidade do encontro sempre foi explorada pelo cinema, desde o clássico meet-cute com as comédias românticas – o clichê da trombada que une: Um Lugar Chamado Notting Hill (Notting Hill, 1999) – ao encontro utópico de romances dramáticos – por qualquer motivo que seja, os protagonistas não podem ficar juntos: Desencanto (Brief Encounter, 1945)…
Os personagens se encontram depois de, no final de semana da independência americana, decidirem ir para Coney Island. Os dois embarcam no mesmo ônibus, chamando atenção um do outro e quase que de imediato se apaixonam perdidamente. Porém, apesar da estrutura estereotípica, existem construções plástico-narrativas super interessantes. Em um dos meus planos preferidos do filme, mesmo na multidão, os protagonistas se transferem para um outro universo onde só há eles dançando – lembra um pouco a dança do planetário de La La Land (2016), um ótimo exemplo de como mesmo com a mesma ideia, dois planos podem ter forças completamente diferentes.
A câmera (ainda) imaculada
Solidão, feito no auge da linguagem do cinema mudo, reflete essa maturidade atingida pela arte cinematográfica em suas escolhas estéticas. A câmera não é só livre para se movimentar no espaço cênico, mas para se contorcer mediante a vontade de seu realizador. Finalmente o cinema estava livre de amarras… e prestes a voltar aos estúdios com o advento do som. Compartilho da ideia (nem tão dramática, se pararmos para pensar) que o cinema de fato teve uma recaída formal com a chegada do som – e isso já pode ser considerado um fato histórico.
As inovações técnicas (ou a revolta do [não] purista)
Particularmente não me considero um purista, e falo isso assumindo não ter controle sobre a opinião do leitor. Me vejo apaixonado pelas especificidades do digital articuladas no cinema de Michael Mann, pelo hiperformalismo das irmãs Wachowski – especialmente em Speed Racer (2008), uma obra prima constrangida – pelo atrevimento plástico de John Carpenter em Fuga de Los Angeles (Escape From L.A.,1996). Enfim, não sou um saudosista da era da película – já que nem mesmo dessa era eu sou.
Dito isso, não acho contraditório ter uma preferência natural pelo simples. Tomo aqui a liberdade de citar Jean-Luc Godard em sua crítica de Paraíso Infernal (Only Angels Have Wings, 1952) para a Cahiers: “Para citar Fénelon, ‘um sublime tão familiar, tão doce e tão simples, que qualquer um ficaria persuadido a crer que o encontraria sem dificuldade, embora poucos homens sejam capazes de encontrá-lo’. Muito brilho me incomoda e me cega; prefiro o agradável e o verdadeiro ao surpreendente e maravilhoso.”
Dado o exposto, Solidão parece dissolver seus momentos de verdade em virtude do grafismo técnico nada expressivo: do color tinting ou da adição de voz síncrona que mais te tira do filme que investe nele. Outros longas, como Chantagem e Confissão (Blackmail, 1929) e Assasinato (Murder!, 1930), ambos de Alfred Hitchcock, são exemplos de como usar o som de forma eloquente, mesmo que ainda na era da transição.
Uma verdadeira pena que mesmo sendo tão persuasivo com sua linguagem cinematográfica, o filme de Fejös deixe de lado o posto de drama da cidade guinado a romance clássico com forma zenital do cinema mudo, para ser um filme-mostração da Universal. Uma excelente experiência, apesar das inovações.
Texto escrito pelo crítico e universitário de cinema Enrico Mancini, especialmente para o Leitura Fílmica.
___________________________________________
Ficha técnica:
Solidão | Lonesome | 1928 | 69 min | Direção: Pál Fejös | Roteiro: Tom Reed, Mann Page, Edward T. Lowe Jr. | Elenco: Barbara Kent, Glenn Tryon, Fay Holderness, Gusztáv Pártos, Eddie Phillips, Andy Devine, Henry Armetta.