Se você não tem crianças ao redor, leve a criança que há em você para assistir ao desenho animado Tarsilinha. Não vai se arrepender.
Tarsila do Amaral, com suas pinturas e desenhos, foi só uma fonte de inspiração, forte eu diria, para o filme. Afinal, tudo dela está lá: seus bichos verdadeiros ou inventados e a paisagem brasileira rural e urbana das primeiras décadas do século XX.
A princípio, a narrativa sinaliza para alguns elementos clássicos dos contos infantis – um espelho, uma chave, como em “Branca de Neve” e “Alice no País das Maravilhas”. Só que vai além, na introdução de personagens míticas e lendárias da cultura brasileira: o Saci Pererê, o Macaco Prego, e todos aqueles que a imaginação de Tarsila do Amaral criou.
O enredo
Tarsilinha e sua mãe vivem felizes em sua casa campestre. Até que uma forte ventania carrega, da caixa de lembranças aberta, os objetos queridos de seus ancestrais: a boneca de pano Nanica, uma bússola, uma pena, um diário que guarda uma flor de manacá, um par de brincos (isso mesmo, aquele do icônico quadro de Tarsila, “Autorretrato”, de 1924).
O vento carregou os objetos e, com eles, a memória da mãe. É, então, que Tarsilinha embarca em sua aventura para recuperá-los, e com isso trazer de volta sua mãe, do mundo do esquecimento.
Assim, a trama se desenvolve na viagem, durante a qual acontece toda a sorte de peripécias, típicas de um conto de fadas.
As peripécias
A primeira peripécia: a transposição do mundo real para o imaginário. Em Tarsilinha, nada de portas minúsculas; é por meio de um mergulho que ela alcança a outra margem, a do mundo desconhecido, e uma bela paisagem se descortina. Lembram-se do quadro “O Lago”, de Tarsila, de 1928?
O primeiro encontro: o Sapo. Toda fábula tem um sapo, aspirante a príncipe, certo? E que pede, como prêmio, um beijo. Esse parceiro de Tarsilinha, em sua busca, pode ser acionado por ela, sempre que precisar, invocando a palavra mágica “Jujuba”.
Como em toda história infantil, chega o vilão que vai tentar impedir a realização dos bons propósitos da heroína. É, então, que entra em cena a Cuca. A daquele quadro famoso, de 1924, sobre o qual Tarsila escreveu à filha: “estou fazendo uns quadros bem brasileiros, um bicho esquisito, no meio do mato, com um sapo, um tatu, e outro bicho inventado”. A mesma Cuca que aterroriza as fantasias das crianças que não querem dormir: “nana neném, que a Cuca vem pegar, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar”.
Outro momento da transposição, que coloca Tarsilinha a caminho da “terra do sem-fim”, onde mora a Lagarta, a ladra que roubou os objetos, se faz por meio de um trem. Particularmente, acredito que essa sequência reúne algumas das cenas mais bonitas do filme. O ponto de partida é a movimentação na estação ferroviária, pela qual transitam, pela primeira vez nesse mundo fantástico, seres humanos. De formas arredondadas, dos corpos aos chapéus, as figuras nos remetem aos demais pintores modernistas, e o trem que desliza, a seguir, é embalado ao som do “Trenzinho do Caipira”, de Villa-Lobos. Obviamente que vem, à lembrança, o belo quadro de Tarsila, “EFCB”, de 1924.
Onde mora a Lagarta?
A dica mais precisa da localização da moradia da Lagarta acontece durante um passeio de Tarsilinha, e seu amigo Sapo, a uma feira livre (quadro “A Feira II”, de 1925). E chega por meio do Saci Pererê que, vejam só, tem uma banquinha para vender sapatos, eventualmente só um pé! É esse trio, agora formado, que parte para o assalto final à “terra do sem-fim”. Porém, não sem antes degustar um bom pastel de feira, com direito à clássica assoprada das primeiras mordidas, pelas beiradas.
E, afinal, onde mora a Lagarta? Dentro do Abaporu, em tupi-guarani, o “homem que come gente” (quadro de 1928). É o clímax do filme, não só porque representa o desenlace da aventura, como também porque, plasticamente, os criadores da animação escolheram utilizar-se da obra icônica de Tarsila do Amaral nesse momento.
Por fim, o confronto com a Lagarta e seu assessor incrível, o Bicho Barrigudo, que se comunica com a patroa por um celular com a estampa do Abaporu na capinha, remete ao início da história. A Lagarta (que nunca virou borboleta, nunca pode voar) é vaidosa, egocêntrica e não tem memória própria. Vai daí que precisa colecionar, em seu gabinete, os objetos significantes, roubados no mundo dos humanos, do lado de lá.
Moral da história
A moral da história fica por conta, talvez, desses artifícios, que permitem desnudar o sentido maior da Semana de Arte de 1922 e seus modernistas. Mergulhar de cabeça nas tradições culturais alienígenas, degluti-las, para produzir os parâmetros de uma cultura brasileira singular. Nessa direção, estamos a falar de perda da Memória, de recuperação da Memória, de criação e recriação de Identidade, enfim.
Nessa viagem, o traço do desenho, inspirado em Tarsila, primou pela exposição de formas arredondadas em contraponto às longilíneas, mas estilizadas, da natureza: os relevos do tipo pão-de-açúcar, os mamoeiros, os coqueiros e os cactos; e pelo traço geométrico das construções urbanas. Tudo nas cores fortes e vibrantes de Tarsila do Amaral.
Enfim, uma bela sincronia entre desenho, roteiro e música, na criação orquestrada por Célia Catunda e Kiko Mistrorigo, da produtora Pinguim Content.
E o Sapo, como nos contos de fadas, ganhou seu beijo, no final. Mas terá, ou não, virado príncipe? Então, corra a ver o filme pra saber.
Texto de autoria de Solange Peirão, historiadora e diretora da Solar Pesquisas de História.
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Ficha técnica:
Tarsilinha | 2021 | Brasil | 93 min | Direção: Celia Catunda, Kiko Mistrorigo | Roteiro: Fernando Salem, Marcus Aurelius Pimenta | Vozes: Alice Barion, Marisa Orth, Ando Camargo, Skowa, Rodolfo Dameglio, Cristina Mutarelli, Marcelo Tas, Maíra Chasseraux.
Distribuição Brasil: H2O Films