Com fantasmas feministas, Vozes e Vultos lida com o sério assunto do feminicídio.
O filme se baseia no livro “All Things Cease to Appear”, de Elizabeth Brundage. Por sua vez, este se inspira na obra “Heaven and Hell”, cujo título completo é “Heaven and its Wonders and Hell From Things Heard and Seen” do teólogo e místico Emanuel Swedenborg. É da parte final desse título gigante que vem o nome original do filme. Aliás, este livro de Swedenborg está em várias cenas do filme, fisicamente e como tema de discussão.
Não espere se assustar muito com o filme Vozes e Vultos. Porém, não o descarte por isso. No lugar do terror apelativo, os diretores e roteiristas Shari Springer Berman e Robert Pulcini levam para a tela o tema do feminicídio inserindo-o nesse gênero cinematográfico. Por isso, o longa foge de algumas fórmulas tradicionais, conforme o desenrolar de sua estória.
Casa mal-assombrada
No início, temos a impressão de que se trata de um típico filme de terror sobre uma casa mal-assombrada. A estória acontece em 1980. George Claire termina o seu doutorado e recebe uma oferta para trabalhar numa pequena cidade ao norte do estado de Nova York. Para acompanhá-lo, sua esposa Catherine larga seu emprego na capital e, junto com a filha pequena, os três se mudam para a região de Hudson Valley.
Em paralelo, o espectador acompanha Catherine e sua filha Franny presenciando manifestações de algum espírito na casa, e o marido mostrando que não é o homem que sua esposa acredita que ele aparenta ser. Fica evidente que George é infiel e mentiroso, chegando até a forjar uma carta de recomendação para conseguir esse emprego. Conforme a trama progride, suas atitudes se tornam cada vez mais graves, até colocando Catherine em risco. Aliás, esse caráter de George parece vir de sua criação, pois vemos que seu pai é homofóbico e prepotente.
Além disso, Vozes e Vultos confronta o cético George com o seu chefe Floyd DeBeers, que acredita nos preceitos sobre a vida após a morte de Swedenborg. Inclusive, ele presenteia George com o livro “Heaven and Hell”. Posteriormente, Floyd é essencial no enredo para mostrar a Catherine que há espíritos em sua casa, e como lidar com eles. E é por seguir a chave crédula de Floyd e de Swedenborg, que o filme não tem como objetivo assustar o espectador.
O destino de Catherine
No mesmo sentido, o destino da protagonista Catherine certamente frustrará o público que pensava encontrar um filme de terror tradicional. Porém, ele faz todo o sentido para o tema universal de Vozes e Vultos. Ou seja, conforme um personagem protesta: “Quando haverá justiça para as mulheres daquela casa?”. Essa pergunta evidencia uma busca pela justiça não só para Catherine ou as mulheres que, antes dela, foram assassinadas na mesma casa. Na verdade, elas representam todas as vítimas de feminicídio do mundo.
Aliás, os realizadores de Vozes e Vultos fazem questão de apresentar dois caminhos para George encarar a justiça. O primeiro, dentro do mundo físico, pois a testemunha que faltava aparece para comprovar a sua culpa. O segundo, no mundo espiritual, pois George rema para esse lugar, quando não vê mais escapatória. E, tal qual o filme apresentara antes, na voz do personagem Floyd, Swedenborg acreditava que tudo que acontece no mundo natural tem uma contrapartida no reino espiritual. Ou seja, inevitavelmente, George receberá sua punição, e a justiça será feita.
Por fim, esse desfecho que entra no fantástico permite encerrar o filme com o quadro da capa do livro do místico, numa bela solução pictórica. Vozes e Vultos pouco assusta, mas é um relevante apelo contra o feminicídio.
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Ficha técnica:
Vozes e Vultos (Things Heard & Seen) 2021. EUA. 119 min. Direção e roteiro: Shari Springer Berman, Robert Pulcini. Elenco: Amanda Seyfried, James Norton, Karen Allen, Rhea Seehorn, Natalia Dyer, F. Murray Abraham, Michael O’Keefe, Alex Neustaedter, Ana Sophia Heger. Rhea Seehorn, Jack Gore.
Distribuição: Netflix.