Uma pessoa possuída pelo demônio fica inchada, soltando gosmas pela pele e pelos orifícios da cabeça, tem uma forma bem desagradável de se ver. Essa pessoa é uma hospedeira. Guarda o demônio que está prestes a nascer. Por mais que ela peça para que a mate, não é isso que se deve fazer. Ao menos não da maneira mais fácil. O demônio vai logo procurar outro hospedeiro. Sobretudo não se mata com uma arma de fogo, mas com todo um aparato que parece medieval. Levar a pessoa que abriga o capeta em formação, ou o que resta dessa pessoa, para algum lugar distante também não adianta nada. O mal sempre retorna. Não nos livramos do mal. O mal está por todo lugar.
Esse é o mote do bom longa argentino Cuando Acecha la Maldad, mais conhecido pela cinefilia brasileira (somos todos meio americanizados, não?) pelo nome internacional, When Evil Lurks (nota do editor: a crítica foi publicada antes da definição do título nacional: O Mal Que Nos Habita). Quando dois irmãos, Pedro (Ezequiel Rodrigues) e Jimi (Demián Salomón) tomam a decisão errada a respeito de um homem das redondezas que ficou possuído, o mal é liberado e contamina o cachorro da nova família da ex-esposa de Pedro.
A cena em que o cachorro ataca a pequena filha dessa nova família já nos coloca num estado de tensão bem apropriado para as futuras tensões, que só não chegam tão fortes porque o diretor, Demián Rugna, pode revelar algum talento, mas ainda é um tanto indeciso, provavelmente por medo de perder parte do público.
Na verdade, o filme já começa com os irmãos encontrando um corpo pela metade, as tripas sendo lambidas pelos cachorros. Entre as coisas desse morto está a carta que os levará ao encarnado principal, aquele que deveria ser aniquilado por um profissional (provavelmente o homem cortado ao meio que encontraram no bosque). Que tipo de monstro teria cometido um crime assim? O que nos espera no restante da projeção?
O longa anterior de Rugna, Aterrados (2017), também de horror, alterna ótimos e maus momentos, já com uma ideia interessante de transmissão e perseguição que faz o filme parecer um ensaio para o seguinte. Antes, Rugna se aventurou pela comédia, no fraco No Sabés con Quién Estás Hablando (2016). Percebe-se, por esses três longas vistos, uma clara progressão, e talvez um sinal de que Rugna renda melhor no horror do que em outros gêneros.
O Mal Que Nos Habita é um horror fronteiriço. Estamos longe das grandes cidades, embora eles façam menção de alcançar uma delas. Nessa terra distante, lugar interiorano onde o mal se espalha mais facilmente sem ser notado, temos uma profusão de ruínas, casas grandes cercadas de bosques, estradas semidesertas e uma certa rudez no trato entre as pessoas. O preconceito também é evidente, assim como o conservadorismo. Armas de fogo parecem ser itens obrigatórios de sobrevivência. O mal se alimenta desse e de outros medos.
Pedro e Jimi não são bem o que podemos chamar de heróis. Pedro, principalmente, tem de se manter afastado da ex-esposa por decisão judicial. Não é flor que se colha ou se cheire. Quando ele se aproxima para avisar do mal ao redor, a esposa e seu atual marido ameaçam chamar a polícia. Pedro ainda tem, no decorrer do filme, uma série de decisões equivocadas, ao menos para nós, espectadores, que nos acostumamos a ouvir e respeitar as palavras dos personagens que parecem mais sábios a respeito da ameaça que enfrentam. Pedro faz quase tudo ao contrário, e por isso o perigo só aumenta.
Um dos filhos que teve com sua ex-esposa tem autismo em grau severo. Há alguma coragem em mostrar esse filho em contato com o mal, sobretudo pela explicação dada pela personagem que entende do assunto. O que o filme não explica muito bem é como afinal se dá a contaminação pelo mal. Há até alguns desenvolvimentos ilógicos nesse sentido.
Mas isso não importa muito quando ficamos um tanto temerosos do que podemos ver em cena, o talento na criação de uma atmosfera de tensão supera muitas vezes a falta de lógica. Além disso, há algumas pistas que só muito mais tarde se revelarão na trama, o que mostra uma estrutura erguida com inteligência. Palmas para o roteiro original escrito pelo próprio diretor.
O horror, obviamente, se alimenta de nossos medos, dentro da suspensão de descrença que precisa haver, em algum nível, para que o gênero seja bem-sucedido. Nesse exercício, podemos dizer que Demián Rugna comete menos erros que acertos.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
O Mal Que Nos Habita | Cuando acecha la maldad | 2023 | 99 min | Argentina, EUA | Direção: Demián Rugna | Roteiro: Demián Rugna | Elenco: Ezequiel Rodríguez, Demián Solomón, Silvina Sabater, Luis Ziembrowski, Marcelo Michinaux, Isabel Quinteros, Virginia Garófalo.