Uma das maiores qualidades do cinema iraniano é extrair o máximo das premissas mais ordinárias. Assim, Ebrahim Forouzesh realizou A Chave (1987), a partir de um roteiro de Abbas Kiarostami sobre um menino que fica preso em casa com seu irmão bebê e precisa lidar com perigos domésticos diversos, como uma chaleira com água fervente. É uma aula de suspense com uma criança como protagonista e um apartamento como cenário quase único da ação.
O realizador Massoud Bakhshi consegue feito semelhante com Yalda – Uma Noite de Perdão, filme de 2019 que só agora chega ao circuito comercial brasileiro, ambientado quase todo no estúdio de um programa sensacionalista de TV. Bakhshi estreou com o belo documentário Teerã Não Tem Mais Romãs (2007). Seu primeiro longa de ficção é o não visto Uma Família Respeitável (2012). Yalda é seu segundo longa ficcional.
Ficamos sabendo dos antecedentes da trama durante o programa: Maryam é a filha de um motorista particular que se torna muito próxima de Zia, a filha do patrão. Zia consegue um bom emprego para Maryam na empresa do pai. As duas se tornam praticamente irmãs. Mas o pai de Zia quis casar com Maryam, e após muita insistência, conseguiu o que queria. Isso é o que ficamos sabendo do passado das personagens.
No momento do programa “A Alegria do Perdão”, vemos Maryam após ter matado acidentalmente seu marido (que é mais velho que seu próprio pai), acusada também de não ter prestado socorro enquanto ele ainda estava vivo. Ou seja, tudo o que testemunhamos é a maneira como cada personagem lida com o assassinato ocorrido anteriormente. O programa de TV implica que Zia perdoe Maryam, mas antes ambas precisam lavar roupa suja no ar, bem ao gosto das plateias sedentas por barracos íntimos. Isso tudo na noite de Yalda, ou seja, a festa do solstício de inverno que provoca a noite mais longa e escura do ano no Irã.
Ficamos ouvindo as trocas de acusações entre as duas, cada uma com sua versão do que ocorreu e das reais intenções por trás do casamento. Vemos a reação de quem está dirigindo o programa nos bastidores e das testemunhas, uma série de preocupações de que o programa possa degringolar, em suma, tudo isso e mais uma trama de folhetim que se revela aos poucos e que envolve um cruel e sádico conflito de classes. Quando percebemos, já se passou uma hora de filme. É uma virtude e tanto fazer o tempo passar sem que percebamos.
O trabalho de câmera não é tão preciso quanto nos filmes de Kiarostami ou Jafar Panahi, outro iraniano celebrado internacionalmente. Mas o grande trunfo de Bakhshi, além de conseguir prender nossa atenção como um hábil manipulador de emoções, é fazer com que as câmeras do filme se confundam com as do programa, de modo a não sabermos o que é criado para simular o programa e o que é criado para simular imagens externas ao programa. Ou seja, não sabemos o que exatamente o programa de TV está mostrando aos telespectadores imaginários e o que só nós, espectadores não imaginários do filme estamos vendo, o que cria um ruído interessante na narrativa. É como se acompanhássemos o programa dos bastidores, tendo eventualmente o mesmo receio dos produtores de que Zia não perdoe Maryam.
No mais, Yalda ainda retrata os mecanismos pelos quais a mulher (mesmo Zia, que se envolve em um acidente de carro na tentativa de fugir do programa) é quase sempre a culpada, e para ser perdoada precisa se humilhar. No caso de Maryam, também pagando mico para uma grande audiência televisiva.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Yalda – Uma Noite de Perdão | Yalda | 2019 | França, Bélgica, Alemanha, Suíça, Luxemburgo, Líbano, Irã | 89 min | Direção e roteiro: Massoud Bakhsh | Elenco: Sadaf Asgari, Behnaz Jafari, Babak Karimi, Fereshteh Sadre Orafaiy.
Distribuição: Imovision.