A Cura confirma definitivamente Kiyoshi Kurosawa como o grande novo nome do terror japonês, após iniciar sua carreira em 1973.
O filme lida com a teoria do magnetismo animal criado por Franz Anton Mesmer (1734-1815), conhecida como Mesmerismo. A abordagem coloca essa ideia como propulsora do mal que transforma um rapaz de nome Mamiya em um propagador de instintos assassinos.
Suspense
Na primeira metade de A Cura, a trama se insere no suspense. Começa com um violento assassinato, e conhecemos o detetive Takabe, que investigará o caso. Já é o terceiro crime que termina com a vítima marcada com um grande “X” na área da artéria. Além disso, o que causa ainda mais estranheza é que Takabe encontra o assassino ali mesmo, escondido e perdido.
Em paralelo, acompanhamos o enigmático Mamiya. Ele surge numa praia, com amnésia, e um homem o ajuda. Aos poucos, Mamiya começa a conhecer esse homem solícito, conhecendo suas fraquezas. Dessa forma, o filme nos apresenta sutilmente o método de atuação desse inusitado serial killer. Ao contrário do padrão desses psicopatas, este nunca executa o assassinato. Na verdade, ele induz as pessoas a extravasarem sua raiva de forma violenta contra uma vítima.
Ainda dentro do suspense, existe um confronto de mentes entre Takabe e Mamiya. Os dois disputam quem consegue controlar o outro, num duelo que remete a O Silêncio dos Inocentes (1991). Naquele filme de Jonathan Demme, a detetive Clarice Starling (Jodie Foster) encara o Dr. Hannibal Lector (Anthony Hopkins), numa cena inesquecível de disputa de controle. Mas, em A Cura, o vilão Takabe possui o diferencial da paranormalidade, o que fica evidente na segunda metade da história, quando entra no gênero terror.
Terror
A partir do momento em que a polícia captura Mamiya, e Takabe e seu parceiro Sakuma investigam dois locais onde o suspeito viveu, o suspense dá lugar ao terror. Antes, o filme já mostrara cenas de violência gore, principalmente no assassinato praticado pela médica. Mas, com a aparição do animal mutilado e do casarão abandonado não ficam dúvidas que agora estamos no universo do terror.
Por isso, o filme revela a ligação de Mamiya com Franz Mesmer. A princípio, como tema de sua tese no curso de psicologia, mas, depois, como instrumento prático do poder de magnetismo animal. O roteiro não revela como isso acontece, porém, em se tratando de pessoas separadas há mais de um século, só o sobrenatural poderia explicar esse elo.
Kireru
A Cura, como outros filmes do J-horror, trabalha o problema social do “kireru”, que é a explosão de raiva que acometeu muitos cidadãos japoneses na década de 1990. Nessa época, aconteceu o estouro da bolha econômica no país, que levou a uma grave crise econômica. Como resultado, a insegurança invadiu o consciente coletivo, principalmente pelo fato de muitas pessoas perderem seus bens e seus empregos. Então, com os nervos à flor da pele, muitos sucumbiam a momentos súbitos de raiva, sem motivo aparente.
Assim, no filme, pessoas comuns e, aparentemente, estáveis, se tornam assassinas sob a influência hipnótica do vilão Mamiya. Este se aproveita do ponto fraco de suas vítimas, ou seja, o que mais os enervam. Nesse sentido, o próprio protagonista é um assassino em potencial. Afinal, Takabe é um workaholic e não suporta mais cuidar de sua esposa depressiva. E esse ódio reprimido se torna a porta de entrada para que ele continue a perpetuar o mal iniciado por Mesmer. Entendemos que ele derrota Mamiya, mas sucumbe à influência do próprio Mesmer ao ouvir a gravação no gramofone.
Dessa forma, o epílogo deixa claro que Takabe já não está tão tenso como o vimos durante todo o filme. Por isso, no restaurante, ele agora consegue comer a refeição toda, ao contrário de antes, quando o vimos devolver o prato sem praticamente tocar na comida. Porém, essa aparência de tranquilidade é só uma fachada para ele praticar o mesmerismo. Um pouco antes, o filme mostra que sua esposa aparece morta no centro de tratamento. Agora, ao vermos agindo sobre uma garçonete, temos a certeza de que foi ele que induziu uma enfermeira a matar a sua mulher. E o mal continua assolando a sociedade japonsesa.
Cinema
A Cura utiliza a metalinguagem do cinema como representação da origem do ocidentalismo que desencadeou a bolha econômica. Nesse sentido, um antigo filme da época da chegada do cinema ao Japão retrata um discípulo de Mesmer praticando sua hipnose como cura, mas com um final trágico. Além disso, o fonógrafo que sela o destino de Takabe possui a marca de Thomas Edison, inventor não só deste equipamento, mas também do cinematógrafo.
Com isso, o diretor Kiyoshi Kurosawa simboliza, através da introdução do cinema, a chegada do mal criado por Mesmer. Em outras palavras, a crise econômica que abalou o Japão nos anos 1990 é efeito do capitalismo ocidental, daí que os problemas sociais como o “kireru” oriundam da abertura exagerada à essa influência.
A cura de Mesmer
Como curiosidade, a cura pelo magnetismo animal de Franz Anton Mesmer foi retratada de forma positiva no filme Mademoiselle Paradis (2017). Neste longa dirigido por Barbara Albert, vemos o próprio Mesmer curar a cegueira da pianista Maria Theresia Paradis.
Com outros olhos, Kiyoshi Kurosawa resgata o Mesmerismo como fonte do mal, e constrói um filme extremamente tenso e instigante.
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Ficha técnica:
A Cura | Cure / Kyua | 1997 | Japão | 111 min | Direção e roteiro: Kiyoshi Kurosawa | Elenco: Masato Hagiwara, Koji Yakusho, Tsuyoshi Ujiki, Anna Nakagawa, Yoriko Doguchi.