Como todo filme baseado em obra de Nelson Rodrigues, A Dama do Lotação renderia um belo melodrama pesado fundamentado na psicanálise. A personagem principal, Solange (Sonia Braga), não consegue fazer sexo com o marido Carlinhos (Nuno Leal Maia), com quem se casou virgem, mas sacia seus desejos com outros homens. Desde que viu, ainda criança, um casal de mendigos transando na rua, Solange associa o sexo a uma coisa suja. E o marido, que é seu namoradinho desde criança, personifica um amor puro, e não a sordidez que agora a excita.
Inconformado com a sua condição, o marido a estupra na noite de núpcias. Para retratar a violência desse ato, o diretor Neville D’Almeida recorre à câmera lenta (influência de Sam Peckinpah?). Porém, a música de fundo atrapalha essa intenção, por ser suave demais (só no final fica estridente). Por falar nisso, o uso da trilha musical soa demasiadamente repetitivo, com um mesmo tema sendo tocado em quase todas as transições de cena.
O lotação
A decupagem do filme, por sua vez, impede acompanharmos a gradual deterioração do estado mental da protagonista. A famosa cena no ônibus, quando Solange deixa ser encoxada por um estranho para seduzí-lo e transar com ele na praia, surge apenas no final, no meio do velório em tom fantástico (voltaremos a ele depois). Porém, pareceria mais lógico que esse trecho, que inclusive inspira o título, surgisse antes. Ou seja, no momento em que ela deixa o carro no estacionamento e retorna mais tarde. De qualquer forma, o ônibus que provavelmente deu início a essa prática é aquele (vazio, e não lotado) no qual ela encontra o ex-contínuo da empresa do sogro.
A outra escapada envolvendo ônibus cai na comédia, quando a dupla Mosquito e Bacalhau (motorista e cobrador) pedem para todos os passageiros descerem para que possam abordar Solange. Como ingrediente humorístico adicional, os figurantes, que deviam correr atrás do ônibus protestando, estão mais rindo do que bravos. Em outro momento, surge a figura absurda do psicanalista que atende Solange. Enquanto ela conta a sofrida história do sexo dos mendigos, o doutor apara a sua barba imensa, que acompanha o desleixo de suas vestimentas (camisa com os botões abertos, marca de suor nas axilas, sandálias). Fica evidente que os realizadores não queriam um filme pesado, e sim uma fita erótica com toques de humor. Vem desse objetivo a escalação de Sonia Braga, estrela do sucesso de bilheteria Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976) e da novela Gabriela (1975).
Toques artísticos
Apesar dessa pressão comercial, Neville D’Almeida consegue filmar ao menos dois segmentos muito artísticos. Um deles lembra até o formato de um videoclipe, com Sônia Braga se balançando contra uma cerca de arame no pátio de uma garagem de ônibus, filmada do alto. O outro traz a materialização da morte em vida de Carlinhos, após ouvir as confissões das traições da esposa. Ele está deitado em sua cama, com roupa e posição de defunto, e Solange entra de preto como se fosse um velório. Esses dois momentos oníricos lembram o cinema de Luis Buñuel que, com material similar, criou A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967). Talvez, sem a pressão dos produtores, o A Dama do Lotação de Neville teria um tom amargo e fantástico como Nelson Rodrigues provavelmente imaginou para seu conto.
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Ficha técnica:
A Dama do Lotação | 1978 | 90 min. | Direção: Neville D’Almeida | Roteiro: Neville D’Almeida | Elenco: Sonia Braga, Nuno Leal Maia, Jorge Dória, Paulo César Peréio, Yara Amaral, Claudio Marzo, Márcia Rodrigues, Paulo Villaça, Roberto Bonfim, Ney Santanna.