“A Face do Outro”: filme de Teshigahara questiona a importância das aparências
Também conhecido como “O Rosto da Maldade”, “A Face do Outro” é uma das grandes obras do diretor Hiroshi Teshigahara, realizado na época da eclosão da nouvelle vague japonesa. Com uma riqueza estilística magistral, o filme transpõe para a tela simbolismos que permitem várias interpretações.
No enredo, um homem, o Sr. Okuyama (Tatsuya Nakadai), fica com o rosto desfigurado e sente desmoronar seu relacionamento com a esposa, interpretada por Machiko Kyo. Por isso, aceita experimentar a invenção de um cientista: uma máscara que se molda quase que perfeitamente ao rosto, e que permite uma pessoa assumir uma face diferente. Então, com a cara nova, o Sr. Okuyama decide testar a fidelidade de sua esposa, e bola um plano para seduzi-la.
Desde os créditos iniciais, o filme expõe o rosto como tema principal, com uma montagem de várias fotos 3×4 que são reunidas em um painel cada vez maior. Logo depois, acompanhamos o protagonista falando, mas, o que vemos é a imagem de seu rosto em raio X, que, na verdade, é o que lhe resta fisicamente desta parte de seu corpo após sua face ficar desfigurada. Na sequência seguinte, ele e sua esposa conversam, e a câmera enquadra closes extremíssimos, com detalhes tão próximos de partes dos rostos que se torna difícil identifica-las. Enquanto isso, movimentos irregulares com a câmera na mão demonstram a inquietude do Sr. Okuyama.
Sci-fi
O laboratório do cientista é totalmente branco, high-tech e que dá ares de ficção científica a “A Face do Outro”, em alinhamento com o tema futurista. A face do Sr. Okuyama, mesmo após a retirada da bandagem que até então sempre a cobriu, nunca é mostrada totalmente. Assim, isso ajuda a aumentar o clima de estranheza do filme, já que a sugestão permite ao espectador imaginar uma deformação muito aguda. Em certa cena no laboratório, o rosto sem a bandagem fica atrás de um instrumento de vidro arredondado.
A narração pelo protagonista acompanha a transformação na sua mente após ele começar a usar a máscara, revelando que ele deseja assumir outra identidade, ou mesmo nenhuma identidade, e ele sente isso como um poder. Com a máscara, ele poderia fazer qualquer coisa, pois ninguém o reconheceria. Quando ele passa a perseguir sua esposa para colocar seu plano em ação, a trilha sonora é de suspense. Ao abordá-la, consegue seduzi-la facilmente.
A cena no bar mostra a sensualidade do processo através das pernas se encostando. Após dormir com a esposa, ele a agride porque a considera uma vadia infiel. Como resposta, porém, ela mostra que já o havia reconhecido e que a aparência da pessoa não é mais importante do que seu caráter interior.
Trama paralela
Há uma trama paralela ao do Sr. Okuyama, e que se centra numa jovem garota (Irie Miki) também com uma deformação no rosto. Porém, a deformação é somente parcial, num dos lados, e que ela consegue disfarçar razoavelmente com o cabelo. Na sequência de sua apresentação no filme, ela caminha pela rua e alguns garotos a chamam com o intuito de paquera-la. A câmera gira então faz um giro e a deformação é revelada, uma surpresa para os rapazes e também para os espectadores, que se tornam cúmplices da instantânea reação de desgosto, ainda que socialmente reprovável. O diretor Teshigahara, nesta e em várias sequências, utiliza a imagem congelada para enfatizar o quadro que contém a ideia relevante.
Então, acompanhamos outros momentos do cotidiano da jovem, e percebemos que ela consegue conviver com seu problema. Porém, ela não consegue arrumar um namorado. Em certa noite, tenta aliviar sua sexualidade em uma transa incestuosa com seu irmão. Essa cena mostra o rapaz beijando justamente o local onde a pele da irmã está deformada, o que manifesta que ele não sente repulsa. Logo depois, arrependida de seu ato, a menina toma uma decisão radical. Para ela, era possível conviver com sua anomalia física, ainda que sofrendo, mas não com a deformidade interior que nasceu com o incesto.
Questionamento
“A Face do Outro” questiona o quanto as pessoas colocam importância na imagem exterior, nas aparências, quando o que mais importa é o que está no interior delas. É um tema pessoalmente instigador para o diretor, que também era pintor, e ainda filho de um artista plástico (especialista em ikebanas). As duas histórias no filme defendem esse ponto. Por isso, na sequência final, o Sr. Okuyama imagina como seria caótico o mundo se todos pudessem vestir uma máscara que lhes dessem o poder de não serem identificados. Ou seja, onde pudessem cometer atos irresponsáveis sem enfrentarem as consequências.
Há um teor existencial latejante, das pessoas que buscam suas identidades pensando nas suas aparências. Aliás, é uma retomada do existencialismo de sua maior obra-prima, “A Mulher da Areia” (Suna no Onna, 1964), outra parceria com o escritor Abe Kobo, o roteirista deste filme. Esses dois filmes se complementam, e exibem o que de melhor produziu Hiroshi Teshigahara, numa época em que os diretores japoneses se sentiam livres e estimulados a ousarem, replicando a nouvelle vague francesa.
Ficha técnica:
A Face do Outro (Tanin no Kao, 1966) 124 min. Dir: Hiroshi Teshigahara. Rot: Abe Kobo. Com Tatsuya Nakadai, Mikijiro Hira, Kyoko Kishida, Irie Miki, Machiko Kyo, Eiji Okada, Minoru Chiaki, Etsuko Ichihara, Eiko Muramatsu, Kakuya Saeki.
Assista: entrevista com Hiroshi Teshigahara