Em A Luz no Fim do Mundo, Casey Affleck volta a apostar na melancolia de Manchester à Beira-Mar, que protagonizou sob a batuta de Kenneth Lonergan. É um trabalho pessoal, onde Affleck assume as frentes de ator, diretor e roteirista. Nos dois filmes, o tema central é o vínculo familiar e o peso de perder um ente querido. Contudo, há outra questão que Affleck aborda nesse seu novo longa-metragem.
O prólogo de A Luz no Fim do Mundo revela uma decisão arrojada de Casey Affleck como diretor. E talvez tenha sido encorajado pelo seu métier de ator. A longa sequência de dez minutos se passa inteiramente dentro do restrito espaço de uma pequena barraca. Dois personagens estão em cena. O pai (Affleck) conta uma estória para sua filha de 11 anos Rag (Anna Pniowsky) antes de dormirem. Durante a maior parte desse trecho, a câmera está fixa em plongée (de cima para baixo), mostrando os dois deitados lado a lado, em um take ininterrupto. Quando o plano varia, assume o clássico plano/contraplano usado comumente em diálogos.
O público talvez considere monótono esse segmento, mas ele faz sentido para a narrativa do restante do filme. O conto que o pai inventa versa sobre a Arca de Noé e o processo de preservação das espécies. Então, ao término do trecho, a menina solta uma frase inquietante, exatamente sobre ser a única da sua espécie.
Distopia
Pronto, a partir dessa frase, o público está fisgado. Já entendeu que o filme será uma nova versão distópica do futuro próximo. Mas, qual será a situação que o roteiro aborda será desvendada aos poucos. Logo, descobrimos que as mulheres praticamente estão extintas, então o pai precisa esconder sua filha. Por isso, veste-a como menino e assim a apresenta quando encontra alguém no meio da mata, onde eles vivem para evitar outras pessoas.
Alguns flashbacks do pai revelam como sua esposa, a mãe de Rag (Elisabeth Moss em um pequeno papel), ficou doente e morreu. O público desconfia que uma epidemia dizimou quase todas as mulheres. Então, isso se confirma em uma notícia de jornal que o pai encontra em uma casa abandonada.
Sobreviveram algumas mulheres e elas são mantidas em bunkers, onde estão protegidas das maldades que os homens podem fazer com elas. E também preservadas para que a espécie humana não se extinga – veja aí a relação com a estória da Arca de Noé.
Assim, para evitar que a filha seja levada para um bunker ou, ainda pior, abusada por homens que não veem mulheres há anos, o pai precisa vagar constantemente. E sua paranoia é justificada. Com isso, algumas cenas de ação surgem no filme devido a ataques que os dos protagonistas sofrem de pessoas do sexo masculino que desconfiam que Rag é uma menina.
A importância das mulheres
A Luz no Fim do Mundo provoca a reflexão sobre a imprescindibilidade das mulheres no mundo. Aliás, não só pelo lado científico da procriação e preservação da espécie humana. O que o filme levanta é uma tese mais audaciosa. Sem mulheres, os homens se tornam mais selvagens, e sucumbem aos seus instintos mais primitivos. Por isso, as pessoas do sexo masculino que cruzam o caminho do pai regrediram. Querem capturar sua filha, com certeza para abusar dela, e para isso recorrem à violência. As poucas exceções são o velho Tom que vive na casa que pertencia à avó do pai, e um rapaz que lhes dá carona e que mora numa comunidade que mantém mulheres em um bunker.
Sob outro aspecto, essas duas exceções talvez invoquem que o sexo pode ser o gerador desse instinto desumano. O rapaz, de 19 anos, devido à epidemia, provavelmente ainda é virgem, nunca teve uma relação com uma mulher. E o idoso já não faz sexo. Este é um subtema da estória que cabe ser analisado, apesar de o principal ainda ser a essencialidade das mulheres na vida humana. Elas são a “light of my life” (“luz da minha vida” em inglês) do título original. Sem ela, os homens ficam cegos.
Evidentemente, o título também se refere à importância da filha na vida do protagonista. Após a epidemia, e as consequentes mortes da esposa e quase extinção das mulheres, seu único objetivo se torna criar a filha e mantê-la salva dos perigos. É uma missão dura e aparentemente sem possibilidade de êxito. Quanto mais Rag cresce, mais difícil se torna esconder seu gênero. E, obviamente, ele nunca poderá estar sempre ao lado dela para protegê-la.
Melancolia
O cenário gelado, coberto de neve, das montanhas canadenses, e a trilha sonora em tom baixo e com poucas notas se alinham a essa falta de esperança para os protagonistas. Surge daí a melancolia que permeia toda a estória. No entanto, o filme insere um suspense, ainda que silencioso, que mantém o público sempre apreensivo, pois o perigo sempre está presente.
A parte final reforça a exaltação ao sexo feminino. Se existe alguma esperança, ela está nas próprias mulheres, que, como a própria Rag comprova, pode resolver seus problemas sem a ajuda dos homens.
Casey Affleck se supera na direção e no roteiro de A Luz no Fim do Mundo, provando que possui talentos além da atuação. E conta, no filme, com uma ótima atriz infantil, Anna Pniowsky, que conquista o público com sua atuação nada afetada.
A Luz no Fim do Mundo merece estar na lista dos melhores filmes sobre relacionamento entre pais e filhos, mas também como um dos que melhor abordam a questão dos gêneros sem ser panfletário.
Ficha técnica:
A Luz no Fim do Mundo (Light of My Life, 2019) EUA. 119 min. Dir/Rot: Casey Affleck. Elenco: Anna Pniowsky, Casey Affleck, Tom Bower, Elisabeth Moss, Hrothgar Mathews, Timothy Weber.
Imagem Filmes
Assista: Casey Affleck e Anna Pniowsky falam sobre A Luz no Fim do Mundo