O diretor Kiyoshi Kurosawa é mais lembrado por seus filmes de terror. Merecidamente, pois nesse gênero ele realizou ótimos trabalhos, como A Cura (1997) e Creepy (2016). Mas, sua maior aclamação se deu com o drama Sonata de Tóquio (2008). Em A Mulher de um Espião, ele se arrisca num thriller de espionagem em um inédito filme de época. À primeira vista, parece promissor, ainda mais quando notamos que um dos roteiristas do projeto é Ryusuke Hamaguchi, o nome em alta no cinema japonês contemporâneo, responsável por Drive My Car (2021).
A história se passa na cidade de Kobe, em 1940. O Japão se alinha à Alemanha e à Itália na Segunda Guerra Mundial, e isso traz efeitos imediatos internamente. O comerciante Yusaku é um dos prejudicados, pois o nacionalismo interrompe os negócios com seus parceiros internacionais, principalmente um estadunidense. Então, resolve buscar outros pontos comerciais e, com esse fim, vai até a Manchúria com seu sobrinho Fumio. Os dois passam mais tempo lá do que planejado e retornam transformados. Satoko, a esposa de Yusaku, desconfia que o marido teve um caso no estrangeiro. Por sua vez, o marido desconfia que Taiji, amigo de infância de Satoko e hoje um militar graduado, está apaixonado por ela.
Em quem confiar?
O tema da confiança carrega a história. Porém, conforme a trama avança, essa questão se desloca para além do amor, e passa a envolver questões maiores, segundo o que dizem os próprios protagonistas. É aí que surge a conexão com o título, apesar de que “espião” parece um termo equivocado. Na Manchúria, Yusaku e Fumio descobrem que o respeitado exército japonês Kwantung (ou Guangdong) realiza experiências com armas biológicas com os moradores do território invadido. Ou seja, é esse perigoso segredo que transformou os dois viajantes, e não um caso de infidelidade.
Até esse momento, A Mulher de um Espião cria um terreno fértil que envolve o espectador. Ainda mais porque Yusaku tem pretensões de fazer um filme, e acompanhamos uma cena de mistério que ele roda com Fumio e uma atriz. Já o segredo militar possui impacto suficiente para colocar o perigo na vida do protagonista e ainda potencial para mudar os rumos da História. Mas, ao concentrar os esforços nessa ambientação, o diretor Kiyoshi Kurosawa deixa de lado os personagens. Então, quando a ação propriamente dita começa a depender das interações entre eles, o filme desanda. Tanto a esposa Satoko quanto o marido Yusaku parecem tão rasos que suas atitudes carecem do mínimo de coerência.
Sem sentido
O casal se ama, e nenhum deles pensa em ter um caso extraconjugal. E, por isso sentem ciúmes de que o parceiro possa ser infiel. Até aí, o relacionamento deles faz todo o sentido. Porém, depois, tomados pelo dever de revelar as experiências com armas biológicas, eles agem de uma forma tão inconsistente que fica difícil engolir esses personagens. Pressionado, Yusaku conta a verdade para Satoko, mas ela ainda fica com dúvidas. Então, ela procura o sobrinho Fumio, que lhe entrega as evidências para que ela leve até o marido. Porém, o que ela faz com isso? Satoko entrega parte delas para o seu amigo militar, que então prende e tortura Fumio. Mas, por que ela denunciou o sobrinho?
Assim, a história vai perdendo o seu sentido, e caminha para uma reviravolta que pretende ser surpreendente, mas que já antecipamos, pois parece que nada importa mais do que revelar as experiências biológicas proibidas ao mundo. Nem mesmo o amor entre o casal. Aliás, não conseguimos acreditar que Satoko se sujeitaria a viajar para os Estados Unidos de navio, dentro de uma caixa de madeira que nem comporta o seu corpo esticado, durante uma jornada de duas semanas. Não revelaremos mais para evitar spoilers, mas podemos comentar sobre outros aspectos em que o filme erra feio.
Artificial
Se a trama já parece artificial, isso fica ainda mais evidente com os cenários de estúdio, com as construções da cidade nos anos 1940 totalmente limpos, sem nenhuma sujeira. Além disso, Kurosawa utiliza equipamentos digitais sem colocar efeitos que reduzam a sua nitidez perfeita, o que é ruim, pois dá a impressão de que vemos uma novela televisiva. Aliás, isso se acentua com a presença de Issey Takahashi no papel do protagonista Yusaku, já que o ator trabalha muito mais para a televisão. Talvez isso não impacte para a maioria do público ocidental, mas que dizer, então, das tesouras que balançam com o tremor das bombas na cena final? Será que a produção não viu que esses instrumentos cortantes nunca poderiam ficar dentro de um quarto de uma enfermaria repleta de pacientes doentes, uma inclusive com distúrbios mentais?
A Mulher de um Espião ganhou vários prêmios, entre eles o de melhor diretor em Veneza. Apesar disso, este é um dos piores filmes da carreira de Kiyoshi Kurosawa.
___________________________________________
Ficha técnica:
A Mulher de um Espião | Supai no Tsuma | 2020 | Japão | 115 min | Direção: Kiyoshi Kurosawa | Roteiro: Ryusuke Hamaguchi, Kiyoshi Kurosawa, Tadashi Nohara | Elenco: Yu Aoi, Issey Takahashi, Masahiro Higashide, Ryota Bando, Yuri Tsunematsu, Minosuke, Hyunri, Takashi Sasano, Chuck Johnson, Nihi, Sakichi Sato.
Distribuição: Zeta Filmes.