Em A Mulher Infame (Uwasa no onna), Kenji Mizoguchi adentra o universo das gueixas para construir um duro retrato da sociedade japonesa na década do pós-guerra. Com sua habitual visão crítica, o diretor se debruça sobre o conflito entre o moderno e a tradição, entre o ocidental e o oriental. Essa dialética está incorporada nas duas protagonistas, a mãe Hatsuko (Kinuyo Tanaka) e sua filha Yukiko (Yoshiko Kuga).
Mãe x filha
Hatsuko é dona de um bordel, o que desagrada Yukiko que, por isso, partira para morar em outra cidade para estudar e trabalhar longe da mãe. No entanto, o filme começa com o seu retorno para casa após tentar o suicídio porque seu noivo rompeu o relacionamento. O motivo da separação do casal reforça seu antagonismo contra a profissão da mãe, que os pais do noivo desaprovaram. Durante o desenrolar do enredo, surge mais um motivo que separa mãe e filha. Yukiko se envolve com o jovem médico Dr. Kenji, sem saber que a mãe tinha planos de viver com ele em troca de ajuda para ele abrir sua própria clínica.
Esse Dr. Kenji é um personagem ambíguo. Tende para ser um mau caráter, embora seja um profissional competente e íntegro, e seu amor por Yukiko parece ser sincero. Contudo, ele não recusa a oportunidade de aceitar a ajuda financeira de Hatsuko, mesmo que tenha que assumir uma indesejada vida de casado com essa senhora. O cineasta Mizoguchi impõe um destino severo para esse personagem, que termina sem nada. Uma pequena vingança contra uma sociedade esmagadoramente paternalista.
Determinismo
O arco da personagem da filha Yukiko move a narrativa. No início, ela olha com reprovação para as gueixas que trabalham para a sua mãe. Porém, conforme ela testemunha a dura vida dessas moças, sua atitude muda. Fica preocupada em ajudá-las, e separa sua aversão à profissão das pessoas que trabalham assim porque precisam. A Mulher Infame é claro em sustentar que são meninas do campo, de família pobre, que recorrem à prostituição como única maneira de elas ascenderem economicamente.
Já o interesse de Yukiko pelo médico de sua idade é reciprocamente autêntico, porém ela desconhece o plano dele e da mãe de viverem juntos. Quando descobre, prontamente defende a mãe. O evento serve como ponto de virada para a filha se aproximar da mãe. Yukiko percebe que ela é vítima dessa sociedade patriarcal. Seu amadurecimento, como a mãe cita, é na verdade a aceitação dessa tradição determinista. Não há outra opção para Yukiko e – como uma das gueixas pergunta no final, “Quando não será mais necessário existir garotas como nós?” – para todas as mulheres em geral. Eram os anos 1950 e, apesar das roupas ocidentais de Yukiko, a casa de gueixas ainda era uma instituição muito presente na sociedade.
Da mesma forma, a mãe Hatsuko abandona os seus sonhos de vender a casa e viver com o médico. Quando jovem, ela entrou num casamento arranjado, outra tradição japonesa, e logo ficou viúva. Caiu no mundo das gueixas e ganhou bastante dinheiro, a ponto de se tornar dona de uma casa. Mas, não há mais para onde crescer. A sociedade não a aceita e, como ela percebe no final do filme, comprar um casamento feliz é uma grande ilusão.
Melodrama dilacerador
Mizoguchi filma esse melodrama com seu estilo maestral. Movimenta bastante a câmera sobre o dolly, com fluidez, acompanhando os personagens inclusive através de cômodos. Faz belo uso da arquitetura, e filma personagens atrás de paredes e móveis. Essa elegância toda, porém, não impede a contundência do duro realismo da trama.
A doença de uma das gueixas é seguida do sofrimento da sua irmã caçula, que agora vê a profissão como único caminho também. O trabalho é intenso, os homens (muitas vezes os mesmos) não param de aparecer – sem contar ainda os malandros que tentam se aproveitar das moças. Num momento crucial, Mizoguchi emprega a quebra da quarta parede para Yukiko acusar frontalmente o médico. Além disso, o filme traz duas vezes personagens descobrindo a verdade ao espiar atrás de paredes. Primeiro, a mãe faz isso observando a conversa sobre os planos da filha com o médico, e o inverso acontece quando a filha escuta sua mãe com o mesmo homem.
A música que Mizoguchi usa para os momentos mais dramáticos é arrepiante – quase de filme de terror. O diretor busca o melodrama cortante. E atinge o pico dessa intenção na cena do teatro onde a Hatsuko assiste à peça que tira sarro de uma senhora de 60 anos que ousa se apaixonar com essa idade. Para tornar a situação ainda mais contundente, ao lado de Hatsuko sua filha e o médico assistem a comédia rindo muito.
Por trás da elegância de Mizoguchi, A Mulher Infame revela um melodrama dilacerador.
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Ficha técnica de “A Mulher Infame”:
A Mulher Infame | Uwasa no onna | 1954 | 83 min | Japão | Direção: Kenji Mizoguchi | Roteiro: Yoshikata Yoda, Masashige Narusawa | Elenco: Kinuyo Tanaka, Yoshiko Kuga, Tomoemon Otani, Eitaro Shingo, Bontaro Miake, Chieko Naniwa.
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